Advogadas, mulheres e negras: a difícil missão de superar barreiras no mercado jurídico

Neste 8 de março, os depoimentos de Roberta (esq.), Larissa (ctro) e Gabriela (dir.)/Divulgação
Neste 8 de março, os depoimentos de Roberta (esq.), Larissa (ctro) e Gabriela (dir.)/Divulgação
“Existem casos de clientes que não confiam em advogadas mulheres, de delegados que não te dão tanta importância e ainda tem o assédio”
Fecha de publicación: 07/03/2022

O 8 de março, lembrado pelo Dia Internacional da Mulher, já serve há tempos como uma possibilidade de debate muito maior do que a importância que o gênero feminino possui na sociedade: se tornou também uma data de protesto e de luta por igualdade entre mulheres e homens em diversos tópicos. Do acesso à educação, à equidade salarial, da representatividade em cargos de decisão e no que diz respeito a seus corpos a data lembra dos avanços já conquistados e a longa via que essas profissionais terão pela frente.

Em 2021, pela primeira vez, o número de advogadas superou o de advogados no país: hoje são 633 mil mulheres e quase 622 mil homens na Ordem. Os dados, no entanto, não permitem entender como isso se dá em termos raciais: uma pesquisa do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade), indicou que apenas 2% dos sócios dos maiores escritórios de advocacia do país são negros. O número de mulheres negras nestes cargos é ainda menor, o que aponta o verdadeiro abismo que elas têm no acesso a cargos de poder na profissão.

LexLatin conversou com três advogadas de áreas distintas para debater como a questão de raça e gênero influenciam suas vidas profissionais. Contra episódios de racismo e assédio, vindo de quase todos os lados, Gabriela, Larissa e Roberta contam suas histórias.

Gabriela Barbosa, tributarista, 26 anos: “Temos que andar com a OAB colada na testa”

Gabriela Barbosa integra o que se chama de “jovem advocacia”, por ter se graduado há quatro anos. Hoje ela integra a banca de advogados Dias de Souza, em Brasília, como associada para a área de direito público, com ênfase em direito tributário, constitucional e administrativo.

Desde a faculdade, a advogada aponta que nota tratamentos diferentes por parte de agentes do próprio Judiciário, por conta, ela acredita, da sua cor. “Não aconteceu uma ou duas, mas diversas vezes”, ressalta. A recepção dada por agentes em fóruns e cartórios gera marcas até na própria atuação profissional. “A gente tem de andar com a OAB na testa”, lamenta. “Nos cartórios, diversas vezes já precisei ser mais incisiva, dizer que a advogada sou eu. Isso gera todo um cuidado.”

E este cuidado passa de meras formalidades com a fala e passa a ser mesmo físico - e então Gabriela Barbosa fala de seus próprios cachos. “Já ouvi de colegas de profissão, quando estava com tranças, que seria um cabelo muito informal, que não passaria a seriedade necessária para o exercício da profissão…e já ouvi relatos indiretos de que ele não seria arrumado”, rememora a advogada, que passou a respeitar o formato natural do seu cabelo já na faculdade. Hoje, ela diz que não seria capaz de mudá-lo para atender pressões externas. “Foi um processo de construção da minha própria autoestima e confiança, para usar o meu cabelo em todas as condições como hoje”, comenta.

Em sua área, Gabriela Barbosa vê que, por mais que mulheres tenham recentemente ganhado destaque, ainda há um predomínio masculino em cargos de liderança.

Larissa Xavier, criminalista, 30 anos: “Não existe a questão da incompetência da mulher - para nada”

Larissa Xavier, que atua na advocacia desde 2017, tinha desde a faculdade um gosto específico pela temática criminal. A única da turma a querer participar de um tribunal júri na época dos estágios obrigatórios, já naquela época foi confrontada com a visão preconceituosa de seus professores. “Ele disse que eu deveria pensar muito bem porque eu era uma patricinha - e ele usou este termo assim mesmo - e que, por isso, eu jamais iria atender pessoas em cidades-satélites do Distrito Federal”.

O tempo provou a quem cabia razão. Hoje com uma banca própria, a Xavier Advocacia, Larissa Xavier atua dentro dos presídios da capital federal e de fato possui casos onde seu professor afirmou que ela jamais iria. Apesar disso, Larissa indica que ainda sofre discriminação, mais por conta da sua idade e do gênero que por sua raça em específico.

Na sua área, o preconceito também vem em sua maior parte de agentes públicos, aponta a advogada. “Na delegacia, os agentes são mais homens, os presos são mais homens e estamos sempre lidando com homens em situações distintas e certas situações de poder com o cliente”, diz Larissa, que aponta que as mulheres são mesmo uma minoria entre os criminalistas, seja entre os juristas, seja entre as que atuam in loco. “Existem casos de clientes que não confiam em advogadas mulheres. De delegados que não te dão tanta importância e ainda tem a questão do assédio.”

Larissa Xavier conclui que nenhuma destas críticas possui o menor fundamento. “Não existe a questão da incompetência da mulher - para nada”, diz. “É uma questão da própria sociedade, já que o trabalho é feito da mesma forma que um homem faria - com a diferença que sou uma mulher.”

Roberta Duarte, professora, 45 anos: “Não falar em racismo é alimentá-lo”

No Mato Grosso, Roberta de Arruda Chica Duarte preside a Comissão de Defesa da Igualdade Racial da OAB estadual. Apesar de não estar na advocacia há mais de dez anos, sua especialidade é a sala de aula, onde leciona desde os anos 2000.

Talvez por isso, no espaço entre uma lousa e as cadeiras, que a advogada buscava comprovar uma fala de sua mãe, integrante de uma longa linhagem negra na família. “Ela dizia que a educação era o único meio de se conseguir ganhar algum espaço nesta terra”, diz. 

A vocação para o ensino foi a sua maneira, também, de lutar contra os males estruturais da sociedade. Por isso, hoje, ela defende uma abordagem de encarar o problema. “Não falar em racismo é alimentá-lo. Não falar neste tipo de violência é também alimentar essa tendência”, pondera.

A professora lembra que foram as mãos negras e de mulheres que construíram o país como conhecemos hoje - e a mudança em busca de um país melhor passa por buscar que essas mulheres ocupem cargos de liderança. “Não é um tema tão fácil de lidar, mas a forma como se leva esta maneira reflexiva para os acadêmicos em si faz com que eles consigam ter uma conscientização”, afirma a professora. “Até porque ninguém nasce racista.”

O que falta neste 8 março?

Às três, LexLatin fez a mesma pergunta: o que a sociedade brasileira não entendeu, até hoje, para que o debate sobre a igualdade de gênero e de raça pudesse avançar, beneficiando a todos?

Gabriela Barbosa explica que, para avançar neste debate, normalizar discursos que não sejam dominados pelas mesmas vozes - brancas, masculinas e de mais idade - é essencial. Isso é um papel a ser desenvolvido não apenas dentro da advocacia, argumenta, e mesmo de nós da imprensa. 

“Eu gostaria de voltar, futuramente, para falar sobre direito tributário - e não falar apenas sobre o ponto de vista de uma pessoa negra”, diz. ”É preciso garantir o poder de fala às advogadas negras e advogados negros, além da própria racialização, deste lugar de desumanização e desse processo de escravidão que vivemos. É realmente ocupar outros espaços e ter voz neles.”


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Larissa Xavier também argumenta que a construção estrutural da sociedade brasileira tende a deixar homens e mulheres negros longe dos espaços de decisão. “E quanto mais mulheres ocuparem este espaço de poder e de tomada de decisão, melhor.”

Roberta Duarte diz que ainda somos capazes de romper o que é convencional, para que se possa buscar alternativas. “Nós, mulheres negras, precisamos estar sempre conscientizando e mostrando à sociedade nossa beleza social sem padrão”, argumenta. “Nessa construção, o importante é refletir de onde vem esse racismo e essa violência de gênero.”

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