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No dia a dia da profissão e na prática do Direito elas são quase a metade do número de advogados no país. Prova disso são os dados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Do universo de 1.215.347 profissionais do setor, 607.031 mil são mulheres (49,94%). A previsão desse mesmo relatório é de que em 2021 o número de profissionais mulheres ultrapasse o de homens em números.
Em pensar que, há 122 anos, o Brasil tinha a primeira mulher a exercer a advocacia da sua história. Era a fluminense Myrthes Gomes de Campos, que concluiu o bacharelado em Direito em 1898.
Mas por causa da discriminação da época, ela só conseguiu entrar no quadro de sócios efetivos do Instituto dos Advogados do Brasil, entidade que existia antes da OAB, apenas em 1906. Na época, sua atitude de vestir uma beca e entrar num tribunal para defender um homem, acusado de agredir o outro a facadas, escandalizou o Brasil.
Desde os anos 1980 o país viu aumentar o número de mulheres na carreira da advocacia. Primeiro, cresceu o número de estudantes de Direito nas universidades, depois o de profissionais no mercado.
O desafio hoje em dia é sair da base da pirâmide do mundo jurídico e conquistar cargos de chefia. A própria OAB reconhece a necessidade disso. Em 2015, criou o Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada, o provimento 165/2015. Nele, a entidade prega a eliminação de obstáculos e situações que impeçam as mulheres não só de exercer a profissão, mas de chegar a cargos de liderança, no topo da carreira.
O mundo legal tem evoluído – e muito – principalmente nas últimas décadas. Mas o machismo ainda está bem presente. Por conta disso, e para acabar com esta prática, muitos escritórios têm comitês especiais de defesa dos direitos delas e da diversidade.
Um deles é o D Mulheres, do Demarest Advogados, lançado em agosto de 2017. Uma das metas do grupo é o monitoramento das mulheres que exercem o papel de liderança no escritório, um assunto que interessa todo o mercado jurídico. A intenção é alcançar os 50% até 2025, alinhando aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Aliás, essa é uma meta comum de muitos escritórios brasileiros. Mas a realidade das estatísticas ainda está bem longe dessa equiparação.
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E o home office? Ajudou ou atrapalhou a carreira das mulheres? Entre as entrevistadas ouvidas por LexLatin opiniões divergentes. Mesmo antes da pandemia muitas profissionais já estavam acostumadas a essa rotina, porque foram mães que passaram por um período de transição entre o presencial e o teletrabalho. Muitas dizem que antes da Covid-19 a não presença no escritório era mal vista por seus superiores e colegas. Depois que todos tiveram que ficar esse período em casa – inclusive os homens – muitas barreiras cairam. Um exemplo é a presença em reuniões de filhos ou animais de estimação, algo que antes não tinha tão boa aceitação como agora.
Para Márcia Cicarelli, líder do D Mulheres e sócia de seguros e resseguros do Demarest Advogados, uma das questões positivas da pandemia foi a quebra desse paradigma do home office. “Muitos escritórios não tinham essa cultura e não era bem aceito trabalhar de casa, julgava-se que a presença física era muito importante no escritório. Houve a aceleração dessa cultura que ia chegar no mundo jurídico. Para as mulheres era uma reivindicação maior do que muitos homens”, afirma.
Luciana Tornovsky, head de D&I e sócia de M&A do Demarest tem suas ressalvas sobre a flexibilização do trabalho híbrido. “Não podemos esquecer que houve um lado muito negativo na carreira das mulheres e não só no mercado jurídico. Isso porque ainda sobra mais para a mulher as tarefas domésticas e o homeschooling [a educação dos filhos em casa com a tutoria dos pais]. Profissionais que são mães de crianças pequenas principalmente não podem deixar os filhos sozinhos e com isso não conseguiram ter a produtividade que a empresa espera que elas teriam”, avalia.
Apesar da carga maior nas tarefas domésticas para muitas profissionais, Maria Helena Bragalia, sócia de contencioso e cível do Demarest, destaca a ascensão da liderança feminina, que teve papel importante diante das questões típicas de uma emergência de saúde como essa.
“Tem um fator que se destacou durante esse ano e ele não está necessariamente ligado à advocacia. É uma questão macro, mas que descortinou a liderança feminina e as características dessa liderança. A pandemia atingiu de frente alguns aspectos psicológicos das pessoas. Não raras vezes houve funcionários com medo, com situações delicadas em casa envolvendo a família. A mulher tem uma sensibilidade diferenciada e este aspecto foi bastante utilizado neste momento da pandemia”.
Juliana Martinelli, CEO de um dos principais escritórios do Sul do país, que leva o nome de sua família, o Martinelli Advogados, assumiu o cargo em plena pandemia, em abril de 2020, quando havia grande incerteza sobre a situação econômica das empresas e firmas. Para uma das poucas mulheres CEOs de escritórios full service no Brasil, a normalização do home office gerou mais competitividade para as mulheres, mas não só isso.
“As empresas passaram a buscar líderes que conseguissem lidar com seus liderados à distância, que conseguissem manter as entregas e que ajudassem seus empregados com a questão da instabilidade emocional da pandemia. Passou-se a exigir dos líderes habilidades que antes não eram exigidas com tanta intensidade. E aí as mulheres líderes conseguiram ter essa habilidade de forma mais intensa, porque já era natural para elas. Então a pandemia trouxe um elemento de melhor competitividade para as mulheres por normalizar o home office, que era uma condição que muitas já eram obrigadas a ter com frequência por conta da multiplicidade de papéis. A pandemia evidenciou a necessidade do líder ter uma série de habilidades que as mulheres naturalmente costumam desenvolver com mais facilidade que os homens e que antes não era tão gritantes nas empresas, as chamadas sof skills, como empatia, trabalho em equipe, colaboração e o olhar para as pessoas”, explica.
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Preconceito
O mercado mudou bastante, principalmente nas últimas décadas, na avaliação de algumas das líderes dos escritórios brasileiros. Um exemplo é o relato de Simone Dias Musa, membro do comitê administrativo do escritório e sócia coordenadora do grupo de prática tributária do Trench Rossi Watanabe Advogados. A advogada que começou no escritório nos anos 1990 conta como o mercado mudou em duas décadas.
“Quando cheguei no escritório fui alocada em um projeto financeiro e os financiadores eram japoneses. Naquela época eles não se dirigiam às mulheres. Era uma associada sênior na época e cuidava de toda parte tributária do projeto. Eu lembro que, durante as reuniões, explicava para eles com o associado júnior do meu lado, um rapaz, e os japoneses respondiam para ele e não para mim. Achava aquilo tão esquisito, porque era a sênior, estava à frente da situação, mas todas as discussões ocorriam com um rapaz mais jovem do que eu e que era meu liderado. Me senti menosprezada pelo esforço que fazia pelo projeto. Foi uma experiência marcante e que nunca vou esquecer. Ali senti que a razão de ser tratada assim era a diferença de sexo”, conta.
Mais de duas décadas depois, a advogada conta que, felizmente, não precisa mais passar por isso. “Cheguei a liderar grupos globais e não sinto mais isso, pelo menos de uma forma tão clara. Pode até existir em várias das pessoas, mas no mínimo elas disfarçam e têm uma consciência de que elas não podem demonstrar. Já é um grande passo, já nos deixa mais autoconfiantes”, afirma.
Para Tricia Oliveira, sócia da área trabalhista e uma das líderes do grupo de Afinidade de Gênero do Trench Rossi Watanabe ainda há muito a ser vencido em relação à questão do preconceito no mundo jurídico em relação às mulheres – entre pares na advocacia e clientes.
“Muitas vezes quando você está entre clientes a tendência é elogiar a mulher pela forma física ou pela vestimenta do que pela sua capacidade profissional. Isso acontece muito mais com mulheres mais jovens. Eu faço contencioso e muitas vezes em audiência quando se está entre homens existe sempre aquela ar: lá vem essa mulher que vai falar muito, ou vai trazer algum exemplo de filho. Ainda tem um preconceito com relação à postura da mulher e infelizmente vemos isso no mundo jurídico”, explica.
Modelos de liderança feminina
Simone Dias Musa e Juliana Martinelli explicam que é preciso ter no mercado modelos de liderança que podem inspirar outras mulheres a buscar cargos na direção dos escritórios brasileiros.
“Desde que entrei no escritório em 1997 sempre me lembro de mulheres líderes e chefes de grupos de prática e no comitê administrativo. Foi a Claudia Prado, depois Anna Mello e eu. Então temos uns 15 ou 16 anos de liderança feminina no escritório”, afirma.
Juliana Martinelli acredita que a barreira cultural vai ser vencida aos poucos no mercado. “É uma questão das próprias mulheres se verem nessa posição de líderes e de terem esta autoconfiança e de buscarem essa posição. Percebo que muitas enxergam a ambição como uma coisa ruim, como se fosse feio a mulher desejar a liderança. A própria mulher precisa desmistificar esse conceito e enxergar que ela deve sim buscar isso, não só para sua satisfação, mas porque as empresas precisam dessas posições. Uma empresa que tem apenas homens na liderança perde em competitividade e diversidade, perde estes talentos que a mulher consegue trazer e que complementa o dos homens”, diz.
E esse, na avaliação de quem já conquistou seu espaço com muita luta, deve ser o caminho para outras mulheres. Milene Coscione, do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados, defende que a principal mudança deve partir da possibilidade de se reconhecer que as mulheres são sim diferentes e não tem nada errado com isso. “O mercado precisa reconhecer que a nossa capacidade independe da nossa condição de mulher. Estamos no caminho. Temos muitas mulheres chegando a cargos de liderança e essa mudança de mentalidade é benéfica para todos. Muito escritórios já reconhecem a qualidade e competência de mulheres e sua capacidade de liderar equipes”.
as o caminho da igualdade de oportunidades ainda é longo, precisa ser percorrido e continua cheio de barreiras para as profissionais, não só no mundo jurídico.
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