Burrito Sabanero: Uma música que deve a seu intérprete

Já passamos da primeira quinzena de dezembro, o que significa que os judeus estão celebrando o Hanukkah e em breve os cristãos celebrarão o Natal, junto com os que têm outras tradições e aqueles que, sem terem nenhuma religião, também aproveitam as festas. Isso significa que, com essas comemorações, virão não apenas as comidas típicas, rituais e trocas de presentes, mas também músicas sazonais (começando com o hino internacional não oficial de Mariah Carey, All I Want for Christmas is You).

As canções natalinas ou sazonais de final de ano merecem um espaço à parte na cultura popular, tanto quanto as comédias românticas da Hallmark e suas versões da Netflix e Amazon Prime que inundam as telas nesta data. Todos os países têm uma série de temas internacionais e nacionais que se desenrolam durante este mês e que acompanham as velhas e as novas gerações. No caso da Venezuela, de onde eu venho, existem gaitas de foles e aguinaldos (música tradicional) que, em geral, são ouvidas ao mesmo tempo que outros gêneros estrangeiros.

Com o surgimento das redes sociais, é cada vez mais comum conhecer as tradições, danças e canções de outros países. Plataformas como TikTok e Instagram estão repletas de vídeos, alguns mais bem feitos que outros, nos quais se mostra parte do folclore de cada nação. Um desses vídeos, que viralizou há dois anos e que volta às paradas por volta de dezembro, é o de @denzelcrispy, criador de conteúdo do TikTok, que dança o Burrito Sabanero de forma divertida, um típico aguinaldo venezuelano que, além de ser extraordinariamente famoso em muitas outras nações a ponto de muitos acreditarem que lhes pertence (como no Peru e na Colômbia) e com inúmeras versões de artistas, tem uma fascinante história de propriedade intelectual por trás dela.

@denzelcrispy Is it tuki or dooki? 🤔 #FelizNavidad #TimeWarpJump #merrychristmas #christmas #miburritosabanero #miburritosabanerochallenge #miburritosavanero ♬ original sound - Denzel Crisp

Hugo Blanco, seu criador, compôs com a ideia de que Simón Díaz a cantasse, mas quando gravou a primeira versão pensou que talvez soasse melhor cantada por crianças, e não se enganou: esta é a versão que se popularizou em todo o mundo a partir de 1975, a tal ponto que a revista Billboard a listou entre as 100 melhores canções de Natal da história e vários países de língua espanhola e a comunidade latino-americana nos Estados Unidos a incluíram em sua trilha sonora de final de ano.

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Essa versão infantil (ouvida no vídeo do TikTok) foi cantada por Ricardo Cuenci, então com 8 anos e integrante do La Rondallita, como também era conhecido o Coro Infantil da Venezuela na época, que não recebeu royalties por sua interpretação ao longo de sua vida e quase não recebeu reconhecimento por dar voz a uma das canções venezuelanas de maior sucesso da história, atrás de Moliendo café (também de Hugo Blanco) e Caballo viejo (de Simón Díaz). Na verdade, nem Cuenci nem os outros meninos do coro receberam royalties por sua versão, que continua sendo até hoje ― apesar das diferentes versões em diferentes idiomas ― a mais popular.

O Burrito Sabanero interpretado por La Rondallita tornou-se popular graças ao seu arranjador, Raúl Cabrera, que o difundiu dentro e fora da Venezuela em várias turnês até atingir o objetivo de transformá-lo em um clássico. Graças ao trabalho de divulgação de Cabrera, Cuenci e seus companheiros viajaram várias vezes ao exterior para cantar, o que consolidou a fama da música, mas não de seus intérpretes, muito menos de Cuenci, que abandonou a ideia de receber royalties por sua gravação. Vale ressaltar que parte do motivo pelo qual ele não recebeu pelo trabalho é porque seu pai e Blanco brigaram em uma ocasião, o que fechou as portas para qualquer acordo.

Na Venezuela, a interpretação é protegida

Se justiça tivesse sido feita a Cuenci e seus companheiros, todos teriam recebido um bônus por sua interpretação, já que as leis venezuelanas, por meio do Serviço Autônomo de Propriedade Intelectual (Sapi), protegem o registro de produções fonográficas, atos e contratos assinados entre autores e seus agentes para explorar os direitos econômicos relacionados a uma obra e interpretações e performances artísticas como cantar, ler, recitar ou interpretar uma obra literária, qualquer que seja seu formato.

O Sapi especifica que os direitos conexos "estão intimamente relacionados com o direito autoral, desenvolvem-se e produzem-se através da obra original, protegendo os bens jurídicos das pessoas que contribuem para a execução das obras colocadas à disposição do público" e que os seus beneficiários são os artistas, intérpretes ou performers (atores e músicos) quanto às suas interpretações ou atuações, entre outras entidades.

A Lei de Direitos Autorais, em seu artigo 46, especifica que, no registro de uma obra, devem constar nos arquivos o nome e os dados que identifiquem os intérpretes ou o nome do grupo e de seu diretor, no caso de obras executadas por orquestras, independentemente do nome de seus autores. No artigo 63, que trata da proteção penal, uma das partes interessadas ​​reconhecida pela regulamentação são os artistas intérpretes ou executantes em relação aos seus direitos relativos à obra.

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Outras legislações

De um modo geral, os artistas são considerados detentores de direitos autorais até certo ponto. Por exemplo, na legislação espanhola existe a figura dos direitos fonográficos, relativos à gravação original da canção, e que se dividem entre o intérprete (que nem sempre é o compositor) e a gravadora. O ideal é que cada uma das partes nesses processos obtenha royalties pelo seu trabalho, entre os quais destacam-se as licenças mecânicas (aquelas geradas cada vez que a peça é reproduzida), de reprodução (quando transmitida em rádio ou televisão), licenças de sincronização (quando incluídas em outras obras, como trilha sonora), licenças de samples (quando servem de base para a criação de outras obras) e royalties de música impressa (quando sua partitura é reproduzida). Como referência, o Burrito Sabanero é comprado online por 0,99 centavos de dólar e até 19 de dezembro deste ano um de seus links contava com 13.511.863 curtidas no Spotify.

Os direitos conexos são vitais para artistas como Cuenci, pois reconhecem o valor que a interpretação de cada um agrega às composições. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) recorda que os artistas intérpretes ou executantes "também gozam de certos direitos análogos aos direitos de autor, conhecidos como direitos conexos à interpretação" e que entre os beneficiários desses direitos estão os produtores de fonogramas e as organizações de radiodifusão, uma vez que “cada um deles traz um valor específico para uma obra, seja por meio de sua própria criatividade individual, de seu conhecimento especializado ou de seus recursos financeiros e organizacionais”.

Se tivesse tido "sorte", Cuenci poderia ter recebido apenas o suficiente para emprestar sua voz a uma das canções mais importantes da história do Natal latino-americano atual, tanto pela arrecadação de royalties dos discos vendidos quanto, provavelmente, pelo número de vezes que a versão que ele gravou foi ouvida nas telas de quem viu o vídeo @denzelcrispy. Sua vida também poderia ter tomado um rumo diferente? Por enquanto, o ex-artista se encarrega de fazer trabalhos como operário longe de Caracas, capital de seu país, enquanto luta para lembrar as pessoas que existe um burrinho que foi para Belém no Natal.