Caso Telegram: o maior teste do Marco Civil da Internet 

Decisão trouxe a um patamar inédito os esforços da justiça brasileira em coibir a livre desinformação/ ApropriaCYT via Flickr
Decisão trouxe a um patamar inédito os esforços da justiça brasileira em coibir a livre desinformação/ ApropriaCYT via Flickr
Ação inédita por bloqueio de aplicativo fez com que, enfim, plataforma russa se movesse.
Fecha de publicación: 21/03/2022

Uma mensagem recebida pelos clientes da TIM na manhã do último sábado, 19 de março, dava ideia do ineditismo e da gravidade da situação: “Por determinação judicial, o aplicativo Telegram será bloqueado a partir de 21/03 em todo o território nacional por tempo indeterminado”. O fato de nesta segunda-feira (21) o aplicativo continuar operando normalmente é apenas o capítulo final de uma das mais consequentes decisões na tentativa das autoridades de combater as fake news no Brasil, e um dos mais sensíveis testes de estresse do Marco Civil da Internet, de 2014.

Começou na tarde de sexta-feira (18), como um vazamento. O que eram mensagens de pequenos perfis (de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro) no Twitter, citando uma decisão do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes para proibir o aplicativo russo no Brasil se mostrou verdadeiro. A decisão, sigilosa, era encaminhada a um grande número de atores – o que demonstra a seriedade do assunto.


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Na decisão onde buscava proibir o funcionamento do Telegram, Moraes acionou, em uma tacada, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), as empresas de infraestrutura de Internet e as operadoras de telefonia fixa e móvel no Brasil para, juntos, bloquearem ou dificultar o acesso ao aplicativo.

Google e Apple foram notificados para retirar o aplicativo das lojas de download e dificultar seu acesso. Quem fosse pego usando métodos para burlar a proibição –como por exemplo o uso de VPN – sofreria nas mesmas sanções destinadas à empresa, no caso uma multa de R$ 100 mil ao dia.

De acordo com o ministro, a empresa russa não estaria atendendo aos pedidos da justiça brasileira para coibir a desinformação e o discurso extremista no Brasil. Dois exemplos principais estavam na decisão sigilosa: as ordens para derrubar as contas do polêmico bolsonarista Allan dos Santos e uma postagem considerada falsa do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro.

Por isso, a ordem radical. “O desrespeito à legislação brasileira e o reiterado descumprimento de inúmeras decisões judiciais pelo Telegram, – empresa que opera no território brasileiro, sem indicar seu representante – inclusive emanadas do Supremo Tribunal Federal– é circunstância completamente incompatível com a ordem constitucional vigente, além de contrariar expressamente dispositivo legal”, resumiu Alexandre de Moraes.

As reações foram imediatas e mostraram um pouco dos interesses de cada lado: Bolsonaro classificou a decisão de Moraes de inadmissível e colocou a AGU (Advocacia-Geral da União) para defender a empresa na Suprema Corte. Entre todos os políticos brasileiros, Bolsonaro tem a maior lista de seguidores na rede social, quase 1,2 milhão, e poderá usar da rede como uma ferramenta a mais na eleição.

O CEO do Telegram, Pavel Durov, rompeu o silêncio sobre o tema. Em uma mensagem no próprio Telegram, o empresário alegou que as tentativas de contato da justiça brasileira com a plataforma teriam caído em e-mails que não foram vistos e anunciou que tomaria as medidas necessárias.

E foi justamente o cumprimento destas medidas que fez Moraes derrubar sua própria decisão, ainda no domingo. As contas de Allan dos Santos, que já estavam bloqueadas em fevereiro, agora devem ter seus metadados enviados aos investigadores brasileiros, que o tratam como foragido residente no exterior. A publicação de Bolsonaro sobre urnas eletrônicas, considerada enganosa, foi retirada do ar para os brasileiros. E, com isso, o aplicativo continuou no ar.

No entanto, a decisão do ministro trouxe a um patamar inédito os esforços da justiça brasileira em coibir a livre desinformação em um ambiente que, por não possuir pessoa jurídica no país, escapa das regulações do Marco Civil da Internet de 2014. Moraes, que também irá presidir o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) durante as eleições deste ano, voltou a se expor politicamente aos ataques do presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores.  

Eduardo Fucci, sócio e CEO do Fucci Advogados, concorda que o caso do Telegram foi o maior teste até hoje do Marco Civil, apesar de a discussão não ser nova. “O teste de estresse só alcançou as proporções que alcançou por conta do contexto atual: descumprimento reiterado de decisões judiciais pelo Telegram, contexto político (o próprio presidente da República, além de outros políticos, veio a público discutir a suspensão do aplicativo), criticidade da determinação judicial, que afeta um percentual considerável dos smartphones no Brasil que têm o Telegram instalado, dentre outros fatores”, enumera.

No entanto, essa mesma discussão foi travada anos atrás com o bloqueio do Whatsapp atendendo a ordens judiciais. Eduardo acredita que esse é um problema não apenas do Marco Civil, mas de outras leis mundo afora. “Parece que uma lei desse tipo chega sempre depois, deixando um resquício de algo que poderia ter sido regulado com mais afinco, ou de forma mais cuidadosa”, avalia. 

Para Camilo Onoda Caldas, advogado constitucionalista e sócio do escritório Gomes, Almeida e Caldas Advocacia, os eventos mostraram que Alexandre de Moraes tinha uma estratégia. “Ele imaginou que utilizando uma medida dessa natureza, o Telegram sairia da inércia, já que um dos maiores problemas era a absoluta falta de colaboração ou mesmo de comunicação por parte do Telegram que, obviamente, sabia o que estava ocorrendo aqui. Não há como dizer, de uma maneira estapafúrdia, de que houve um problema no e-mail, que não estavam cientes, isso é um caso de repercussão internacional”, pondera. “Então, obviamente o Telegram sabia e não estava sendo nada colaborativo.”

Apesar de considerar a ação do ministro precipitada – já que poderia haver outras formas de atuação – Camilo acredita que houve sucesso na manobra. “O ministro, provavelmente, imaginou que esse bloqueio levaria o Telegram a se tornar colaborativo, o que de fato aconteceu”, afirma. “Nesse sentido, pode se dizer que a medida produziu o resultado que se pretendia, um pouco parecido com o que ocorre em situações que têm execução, não localiza o réu, bloqueia a conta dele e ele aparece no processo. É uma medida que alguns criticam, mas que no final acaba produzindo resultados. Isso é muito comum, por exemplo, na isenção fiscal.”

Isabela Pompilio, advogada especialista em direito digital e sócia do TozziniFreire Advogados, lembra que até hoje Moraes não devolveu a vista da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, suspensa em 2020 e que discute justamente se o Marco Civil pode permitir o bloqueio de aplicativos. A mensagem dele se fez entendida, e por isso, sua mensagem no ano eleitoral estaria dada.


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“No futuro, com eleições chegando e o ministro Alexandre de Moraes figurando como presidente do TSE, talvez a plataforma fique mais atenta com as decisões dali emanadas, a fim de evitar nova ordem de bloqueio”, indica a advogada.

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