Como Bolsonaro se tornou o principal entrave no combate à Covid-19 no Brasil

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Ao defender isolamento vertical, presidente contraria recomendações da Organização Mundial de Saúde e alimenta crise política e jurídica, dizem especialistas.
Fecha de publicación: 25/03/2020
Etiquetas: Brasil

A polarização política tão presente na sociedade brasileira nos últimos anos não teve uma trégua durante a quarentena, causada pela pandemia de coronavírus. Pelo contrário. Os ânimos estão exacerbados, principalmente entre governadores e o mandatário máximo da nação.

Bolsonaro (sem partido), ao invés de apaziguar ânimos e pregar a união nesta época de crise, põe cada vez mais lenha na fogueira. E isso em meio a uma crise sem precedentes nas últimas décadas. Um capítulo importante dessa história foi o pronunciamento feito em rede nacional de TV na última terça-feira (24).

Em seu discurso, visto por milhões de brasileiros, o presidente se preocupou mais com a economia do que com as vida das pessoas, ao defender o isolamento vertical, só daqueles que fazem parte do grupo de risco, como idosos e pessoas com algum tipo de comorbidade, que podem vir a ter imunidade mais baixa.

O discurso não parou por aí. Bolsonaro incentivou jovens, incluindo crianças, a voltarem a circular pelas ruas e exercer atividades normalmente.

"O vírus chegou. Está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar, empregos devem ser mantidos, o sustento da família deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa. O que se passa no mundo têm mostrado que um grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então, por que fechar escolas?", afirmou no pronunciamento de quatro minutos em rede nacional.

Não satisfeito, o presidente fez críticas aos meios de comunicação, que estão mostrando os cuidados necessários para enfrentar a pandemia.

“Grande parte dos meios de comunicação foram na contramão e espalharam exatamente a sensação de pavor, tendo como carro chefe o anúncio do grande número de vítimas na Itália, um país com grande número de idosos e com o clima totalmente diferente do nosso. O cenário perfeito potencializado pela mídia para que uma verdadeira histeria se espalhasse no país”, disse durante o pronunciamento.

Em meio ao pronunciamento, eclodiram protestos por todo o Brasil. Brasileiros bateram panelas das sacadas dos edifícios e gritaram pedindo a saída do presidente. Logo depois da fala, os presidentes do Senado e da Câmara criticaram a postura de Bolsonaro.

“Neste momento grave, o país precisa de uma liderança séria, responsável e comprometida com a vida e a saúde da sua população. Consideramos grave a posição externada pelo presidente da República hoje, em cadeia nacional, de ataque às medidas de contenção ao covid-19. Posição que está na contramão das ações adotadas em outros países e sugeridas pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS)”, disseram Davi Alcolumbre (DEM-AP) e Antônio Anastasia (PSD-MG) em nota do Senado. Alcolumbre contraiu a doença e está em casa em quarentena.

Já o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), se pronunciou pelo Twitter. "Desde o início desta crise venho pedindo sensatez, equilíbrio e união. O pronunciamento do presidente foi equivocado ao atacar a imprensa, os governadores e especialistas em saúde pública”.

O discurso criou um mal estar com os governadores dos 26 estados e do Distrito Federal, que se reuniram ontem à noite (25) para falar das medidas de cuidado, prevenção e isolamento da população. Com isso, criou-se dois pólos de enfrentamento da doença no país, com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, no meio dessa história.

Durante todo o dia surgiram rumores da saída do ministro, que, na avaliação dos políticos e autoridades de saúde, está fazendo um bom trabalho.

Mas o principal antagonista até agora, segundo os especialistas, é o governador de São Paulo, João Dória (PSDB). Ele pode ser um dos adversários de Bolsonaro nas eleições de 2022. A troca de farpas entre os dois é feita diariamente nos discursos de ambos. Enquanto o presidente defende a retomada econômica, Doria prega medidas de prevenção e combate à pandemia.

E quais são os impactos causados por essa briga política em meio a uma epidemia que já matou milhares de pessoas? LexLatin ouviu especialistas em direito e economia para debater a questão.

Para Roberto Dumas, professor de economia internacional do Insper e um dos maiores especialistas brasileiros em mercado chinês, a crise do coronavírus terá duas consequências desastrosas: milhares de mortes e queda brusca da economia. Ele prevê para 2020 uma queda no PIB da ordem de 3,5%.

“Como economista eu digo: coronavírus mata, desemprego também tem sérias consequências. A única diferença é que o presidente, os governadores e a população precisam escolher se a gente quer mortes à vista [por causa do coronavírus] ou grandes problemas à prazo [por conta do desemprego]”, afirma.

O economista acredita que não há como escapar da recessão e prega medidas chamadas de contracíclicas, em que o governo privilegia os autônomos e mais pobres.

“É distribuir dinheiro mesmo. Dá para o Banco Central pedir para os outros bancos emprestarem mais dinheiro, para as empresas realizarem a folha de pagamento, tendo a garantia do Bacen, por um prazo de três ou quatro anos com carência. AÍ as empresas vão continuar a ter dinheiro para pagar os empregados e os problemas à prazo podem ser evitados”, afirma.

As medidas defendidas pelo economista são as mesmas que estão sendo implantadas por EUA, Reino Unido, França e Alemanha.

“Não chegamos no epicentro da pandemia e ainda não temos uma política no Brasil”, analisa Dumas.

Relatório feito pela Abin (Agência Brasileira de Inteligência) indica que o país pode ter 207.435 casos de Covid-19 e 5.571 mortes até 6 de abril. A estimativa considera a evolução dos casos na China, Itália e Irã e foram divulgadas pelo site The Intercept Brasil nesta quarta-feira (25), que teve acesso ao documento sigiloso.

Impactos no mundo legal

A questão legal do conflito entre Bolsonaro e os governadores tem impacto no mundo jurídico em questões financeiras e tributárias, por exemplo. Para Aristóteles de Queiroz Camara, sócio do Serur Advogados, o sistema de distribuição de tributos foi feito para ser harmônico.

“Do ponto de vista do Direito Financeiro, ter uma discordância da União em relação aos estados é uma catástrofe. É o momento de o governo federal dar estímulos aos demais entes federativos. Dar estímulos através de bancos resolve apenas parte do problema”, diz.

Ele acredita que, por conta da diminuição da atividade econômica, a queda na arrecadação vai atingir em cheio os estados da federação. “Os estados podem quebrar amanhã. A União não, porque tem um conjunto de ferramentas muito mais amplo”, analisa.

Para os especialistas, essa briga paralela em relação às ações de combate ao coronavírus pode atingir outros ramos do Direito, como a suspensão de contratos e a questão trabalhista.

“Você alia essa insegurança econômica a uma insegurança jurídica nesse momento de crise. As empresas ficam sem saber quais incentivos elas devem seguir. Elas devem voltar às atividades econômicas, seguindo o que o presidente falou expressamente? Ou devem seguir a determinação do governo do estado ou do município, onde elas se encontram? Você tem duas ordens totalmente diferentes convivendo”, explica Camara.

Outra questão que tem impactos legais é o posicionamento e o discurso do presidente. O especialista em Direito Constitucional do Damásio Educacional, Ricardo Macau, explica três situações legais que podem resultar desse confronto e a responsabilização de Bolsonaro.

A primeira é a instauração do processo de Conflito Federativo, que só pode ser resolvido no Supremo Tribunal Federal (STF). Esse dispositivo é usado quando há um impasse entre estados, Distrito Federal e União, inclusive as entidades da administração direta. Essa competência está prevista no artigo 102, inciso I, alínea f, da Constituição Federal de 1988.

Outra possibilidade é a responsabilização penal do presidente da República em dois artigos do Código Penal: o 267 e o 268.

O 267 trata do crime de epidemia: “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos: Pena – reclusão, de dez a quinze anos”. Já o 268 trata de “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.”

Segundo Macau, a postura de ir a público cumprimentar a população no momento em que ele deveria estar isolado (vários casos de Covid-19, de pessoas que estiveram com o presidente, foram confirmados) e a fala do presidente, minimizando a pandemia e incentivando as pessoas a irem para às ruas, poderiam confirmar a responsabilização de Bolsonaro.

“O problema é a questão das provas contra o presidente, já que os resultados dos exames não foram tornados públicos. E tem a questão política, que precisa da aprovação de 2/3 do Congresso Nacional. E a denúncia precisa vir da Procuradoria Geral da República (PGR)”, diz Macau.

A última possibilidade legal seria o processo de impeachment, por crime de responsabilidade, com base no artigo 85 da Constituição.

São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: II -  o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III -  o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”, diz o artigo.

“No fim, o que pesa é a questão política. Todos os governos que tiveram crises políticas foram responsabilizados pela questão econômica. O presidente pode estar fazendo um jogo perigoso, que é tentar mostrar que, num determinado momento, tentou evitar a crise econômica”, afirma Macau.

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