Como a Lei de Segurança Nacional sobreviveu e serviu para prender um deputado? 

O caso do deputado, segundo especialistas, é um ponto de inflexão na democracia brasileira/Luis Macedo/Câmara dos Deputados
O caso do deputado, segundo especialistas, é um ponto de inflexão na democracia brasileira/Luis Macedo/Câmara dos Deputados
Detenção de Daniel Silveira pelo STF joga luz sobre dispositivo sancionado no fim da ditadura militar.
Fecha de publicación: 18/02/2021

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Foi uma operação, em muitos pontos, surpreendente: numa terça-feira à noite, durante um feriado, a Polícia Federal bateu à porta da casa do deputado federal Daniel Silveira (PSL/RJ) e o levou preso, em flagrante. A ordem, do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, foi uma resposta a um vídeo onde o deputado defendia a destituição de ministros daquela mesma Suprema Corte e fez uma apologia ao Ato Institucional nº 5, principal dispositivo da ditadura militar brasileira. Foi uma decisão rápida – referendada ainda mais rapidamente em sessão da Corte no dia seguinte, de maneira unânime.

A prisão, porém, foi baseada em um texto controverso: a Lei 7.170/1983, conhecida como LSN (Lei de Segurança Nacional). Sancionada por João Baptista Figueiredo, o último general presidente da ditadura, o texto prevê os crimes que lesam a integridade e a soberania nacional; o regime representativo, a Federação e o Estado de Direito; e os chefes dos poderes da União. 

O ato de "tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito", previsto no artigo 17, foi um dos vários crimes que Moraes imputou ao deputado no momento de sua prisão. Haveria também violações aos artigos 18, 22, 23 e 26 da mesma lei.

Como uma lei, aprovada nos estertores de um regime antidemocrático, se mantém até hoje? A resposta passa pela presunção de constitucionalidade. "Todas as normas anteriores à 1988 que forem compatíveis materialmente à Constituição estariam recepcionadas pela nova Constituição", explicou o professor-assistente de direito constitucional da Universidade Candido Mendes, Adriano Sousa. Leis como o Código Tributário Nacional e mesmo o Código Penal, adotado na ditadura Vargas, ainda são válidos. A Lei de Imprensa, editada em 1967, não teve o mesmo destino e foi barrada pelo STF em 2009.


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Até o momento, a Suprema Corte ainda não debateu o texto – o que permite que ela ainda seguisse em vigor até hoje. Desde os anos 2000, a LSN foi aventada contra o MST (Movimento dos Sem Terra), os manifestantes de 2013 e a extremista Sara Winter, no ano passado. Projetos de lei também acabaram nunca tramitando. 

O caso do deputado, segundo o professor, apresenta um ponto de inflexão na democracia brasileira e é um exemplo do paradoxo da tolerância, de Karl Popper – no qual uma sociedade ilimitadamente tolerante traga em si indivíduos contra esta própria tolerância. "Talvez por isso que a Lei esteja sendo utilizada mais agora do que em outros momentos", disse o professor. "É o momento que as instituições precisam dar uma resposta, à luz dos valores e princípios democráticos da Constituição."

O professor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da FGV (Fundação Getúlio Vargas), Davi Tangerino, explica que a aplicação da LSN ao caso do deputado se dá por conta da sua redação aberta. "A Lei foi feita com cabeça de militar, mas existem previsões genéricas o suficiente para enquadrar a fala do deputado", disse.

Em sua visão, o Judiciário passa a agir por consequência de outro fenômeno – da passividade do Legislativo em reprimir tais discursos extremistas. "A crise sinaliza que o Parlamento tem que levar a sério a quebra de decoro. Se ele está com medo que amanhã ou depois outro deputado seja enquadrado na mesma lei, que então faça a lição de casa, e o Judiciário irá recuar", afirmou Tangerino. 

Tal descompasso em impedir discursos como o do deputado geraram situações raras, como o consenso dos ministros em referendar a prisão. "Isso, lá [na Suprema Corte], não é comum."

O advogado criminalista e sócio do Boaventura Turbay Advogados, Thiago Turbay, acrescenta que o texto é condizente com uma ordem autoritária de manutenção do establishment, buscando castrar liberdades individuais. "É um arremedo normativo mal engendrado, que produz idiossincrasias favoráveis às perseguições políticas e aniquilação de supostos inimigos, reais ou imaginários", comentou o criminalista.

Turbay argumenta, no entanto, que o discurso do deputado promove uma ruptura indefensável. "Não há nada de democrático na sua expressão, tampouco, a resposta estatal me parece inconstitucional ou deslegitimada democraticamente, ainda que seja possível discorrer sobre os fundamentos jurídicos da prisão", disse.

Tangerino reconhece que há custos na aplicação de uma lei que carrega um peso tão retrógrado quanto esta, e defende uma nova redação. "Não é uma aplicação, digamos, fácil e direta. O melhor seria que tivéssemos uma nova Lei de Segurança Nacional, inspirada em valores democráticas da Constituição e que punisse este tipo de comportamento". 

Já Adriano tem outra saída. "Nenhuma lei é suficientemente má enquanto existem bons juízes", pondera o professor, se valendo de um antigo provérbio do direito. "E quem são os bons juizes? São aqueles que seguem o espírito da Constituição. É preciso interpretar esta Lei à luz da Constituição."


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