A novidade chegou como um furacão na internet e em poucos dias ganhou milhões de novos usuários. O ChatGPT, uma ferramenta que se baseia em inteligência artificial para criar textos, trabalhos acadêmicos, poemas e até letras de música de forma gratuita tem causado polêmica no mundo da propriedade intelectual, não só porque “recorta e cola” da internet, mas porque abre a possibilidade de que pessoas que usam a plataforma criem obras intelectuais apenas interagindo com o chatbot, um robô virtual.
A arquitetura do ChatGPT, criada pela empresa OpenIA, é estruturada numa rede neural chamada Transformer, que trabalha com textos. Como em toda inteligência artificial (IA), a ferramenta coleta informações com base no que está disponível na internet, no cruzamento do que está disponível na Wikipédia, livros online, Twitter, Reddit e outros vetores de dados. Isso permite à plataforma ter especial atenção às palavras-chave, ao contexto e a diferentes significados que as palavras podem ter. A partir daí, o algoritmo aprende os padrões de como as pessoas se comunicam e de como as frases são montadas. Com isso, o ChatGPT transforma os questionamentos dos usuários em respostas criativas, trazendo contextualizações, como num texto escrito por uma pessoa.
E isso criou um dilema para a propriedade intelectual: se agora a inteligência artificial escreve até livro, quem é o autor dessa obra? Imagens ou textos criados por inteligência artificial são cópia ou criação?
“Sob a ótica jurídica, a Lei de Direito Autoral considera que o autor de uma obra literária ou artística é a pessoa física que a criou, não havendo previsão legal para a proteção de obras originais criadas por IA. Isso não significa que o plágio esteja liberado. Não se pode indicar como sua a autoria de obra criada por terceiros, ainda que o terceiro seja um sistema de IA, sob pena de sanções éticas disciplinares (no campo acadêmico) ou mesmo de incidência do crime de falsidade ideológica, dependendo das circunstâncias”, explica Filipe Fonteles Cabral, sócio da área do escritório Dannemann Siemsen.
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Há quem questione se sequer existiria um direito autoral decorrente do material produzido neste caso. Isto porque, de acordo com o Direito brasileiro, são consideradas obras intelectuais protegidas “as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”, e é considerado autor “a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica”.
Assim, aplicando-se o conceito de que o autor teria necessariamente que ser uma pessoa física, e suas obras, por sua vez, produtos elaborados a partir da criatividade humana, especialistas defendem que a OpenIA não poderia ser autora de qualquer obra produzida na plataforma, uma vez que a Inteligência Artificial não seria verdadeiramente inteligente, mas resultado de ato autônomo de reproduções realizadas de maneira sintética. E, neste sentido, tampouco o usuário da plataforma poderia ser considerado o autor.
“A obra produzida pelo ChatGPT somente poderia ser explorada economicamente pela OpenAI, e não pelo usuário da plataforma, salvo se de outra forma acordado entre as partes”, avalia Yuri Nabeshima, advogado, head da área trabalhista e de inovação do VBD Advogados.
Outra questão relacionada aos direitos de propriedade intelectual diz respeito à base de dados utilizada pelo OpenAI para produção do material dentro da plataforma. Para os advogados consultados pela LexLatin, caso a base de dados seja composta de elementos que não são de domínio público, tendo em vista que não há expressa referência com reconhecimento dos devidos créditos às fontes utilizadas, é possível que o ChatGPT possa estar infringindo direitos autorais de terceiros.
Por outro lado, é possível defender que não haveria violação dos direitos autorais, baseado no art. 46, inciso VIII, da Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei nº 9.610/1998). A norma prevê que é permitida “a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores”.
“Hoje não há um arcabouço regulatório referente à propriedade intelectual que estabeleça claramente diretrizes e normas sobre direitos autorais decorrentes de obras produzidas por ato autônomo de Inteligência Artificial. Desse modo, é salutar a criação de uma previsão legal específica para regular esta nova realidade, que não encontra (e não encontrará) respaldo adequado na atual legislação, fruto de outros tempos”, afirma Nabeshima.
“Sem dúvida, essa discussão é apenas o início de outros pontos controvertidos que envolvem Inteligência Artificial, o que fará com que os operadores do Direito estejam preparados para essas demandas e a nova realidade, que extrapolam o previsto na legislação e exigem um trabalho jurídico multidisciplinar”, diz Daniela Favaretto, especialista em Contratos e Fashion Law, sócia do Chiarottino & Nicoletti Advogados.
O grande desafio que essas ferramentas levantam, segundo os advogados consultados, é que nem sempre haverá um cenário binário em que uma obra foi inteiramente gerada por uma IA ou inteiramente gerada sem qualquer interferência de uma IA. A popularização dessas ferramentas faz com que existam diferentes formas de utilizá-las. Com isso, vai ser um desafio dizer o que foi gerado pela criatividade de uma pessoa que faz uso dessa ferramenta e o que foi de fato gerado pelo sistema de inteligência artificial de forma isolada.
“Teremos desafios pela frente. Por exemplo, os sistemas de inteligência artificial precisam receber treinamento e, caso essa IA esteja sendo treinada com uma base de dados protegida, ou caso haja uma inserção de obras protegidas na base de dados de treino, isso também vai levantar dúvidas, também vai levantar debate sobre possíveis violações à propriedade intelectual. Então todas essas questões levantam um debate sobre a regulação do tema”, analisa Carolina Giovanini, advogada especialista em Direito e Inovação do escritório Prado Vidigal Advogados.
No Brasil, já existem propostas que tratam da regulação da IA. Um deles é Projeto de Lei nº 21/2020, popularmente conhecido como Marco Legal de Inteligência Artificial, em tramitação no Senado. A norma foi apresentada em dezembro e foi discutida durante oito meses por uma comissão de especialistas. O relatório final tem mais de 900 páginas e inclui a minuta, o rascunho de um projeto de lei, com 45 artigos. O problema é que as discussões de propriedade intelectual relacionadas a tecnologias como o ChatGPT ainda são insuficientes.
Na prática, de acordo com os advogados consultados, as ferramentas de IA generativas (como o ChatGPT) funcionam como ótimos recursos para pesquisas, mas estudantes e profissionais não podem se deixar levar pela facilidade do “recorta e cola”, devendo imprimir sua parcela de contribuição criativa significativa para o produto final.
Uma das medidas de fomento à inovação é uma exceção da proteção aos direitos autorais no caso de utilização automatizada de obras e em processos de mineração de dados e mineração de textos em sistema de IA, mas isso especificamente em atividades conduzidas por instituições de pesquisa, jornalistas, museus, bibliotecas, o que mostra que o debate sobre o uso justo (fair use) também é relevante.
“De modo geral, é importante notar que a inteligência artificial é uma tecnologia que está em desenvolvimento constante e qualquer tipo de regulação prematura ou genérica pode impactar e limitar esse desenvolvimento, além de ser uma regulação que pode se tornar rapidamente obsoleta. Então, nesse momento, é muito importante ter um olhar voltado ao fomento da inovação e analisar caso a caso, essas atividades que podem afetar a propriedade intelectual", explica Carolina Giovanini.
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“É indubitável que serão necessárias mudanças e inovações legislativas a fim de regulamentar tais situações que, até então, não existiam em nosso cotidiano e muito menos em nosso ordenamento jurídico. Até que tais movimentações legislativas ocorram, devemos contar com que os usuários que utilizem de tal tecnologia tenham em mente a ética e a moralidade”, afirma Victor Meireles Faria, advogado especializado em Direito Empresarial, do GVM Advogados.
“A academia e a indústria precisarão se adaptar aos novos tempos e modificar noções já consolidadas sobre propriedade intelectual, sendo certo que, ao nosso sentir, a empresa OpenAI, proprietária de tal tecnologia, irá expandir os mecanismos de monetização da plataforma, modificando, inclusive, a natureza do software, que hoje é aberto e sem fins lucrativos. Observa-se que os termos de uso do ChatGPT vedam o uso comercial do material gerado pela plataforma sem o consentimento da OpenAI, bem como o uso indevido de modo a violar propriedade intelectual de terceiros. Assim, os indivíduos que infringirem estas e outras restrições poderão ser processados judicialmente pela OpenAI e seus investidores, bem como por terceiros”, analisa Bruno Guerra de Azevedo, sócio da área de Direito Digital do SGMP Advogados.
"A propriedade intelectual produzida pela Inteligência Artificial é um desafio que tem de proteger e ao mesmo tempo incentivar a inovação. O primeiro passo é avaliar a abrangência das definições da legislação nacional e supranacional diante dos resultados oriundos da IA. Depois, é necessário um debate público amplo, como vem acontecendo na União Europeia”, diz Wilson Sales Belchior, sócio do RMS Advogados.
O caminho para essa discussão, na avaliação dos advogados e especialistas em propriedade intelectual, é uma definição de como essaferramenta será vista em eventuais disputas. Também é preciso debater como alterações legislativas podem reconhecer algoritmos de IA como detentores de direitos autorais, seja pela falta de personalidade jurídica de um algoritmo, seja pela diversidade de atores por trás desses algoritmos (idealizadores, desenvolvedores, treinadores e financiadores). Entretanto, observa-se na América Latina e no mundo uma demanda por transparência, que ganhou corpo com as leis de proteção de dados pessoais e que hoje influi nas iniciativas de regulação de tecnologias baseadas em inteligência artificial.
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