Como trabalhadores domésticos ainda acabam submetidos à escravidão no Brasil

No ano passado, 31 trabalhadoras domésticas foram resgatadas da escravidão moderna no Brasil/Canva
No ano passado, 31 trabalhadoras domésticas foram resgatadas da escravidão moderna no Brasil/Canva
Jurista aponta falta de políticas públicas para prevenir abusos e incentivar persecução penal.
Fecha de publicación: 28/07/2022

Uma história abusiva de trabalho doméstico motivou indignação em todo o Brasil nas últimas semanas. Trata-se do caso retratado no podcast “A mulher da casa abandonada”, do jornalista Chico Felitti, do jornal Folha de S. Paulo, que investigou a história de uma mulher brasileira, considerada foragida pelo Federal Bureau of Investigation (FBI), que submeteu uma empregada doméstica a condições degradantes de trabalho, comparáveis às práticas escravocratas do século 18. 

Só que, longe de ser um caso extraordinário, a história dessa "mulher da casa abandonada" retrata um crime perverso mas ainda rotineiro no Brasil. Em 2021, auditores resgataram 1.937 pessoas de condições laborais análogas à escravidão em território brasileiro, segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência. Desses casos, 31 vítimas eram trabalhadoras domésticas. 


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Os afazeres domésticos já foram considerados, de maneira preconceituosa e patriarcal, uma “função natural” das mulheres. Mesmo depois da proibição oficial da escravidão no Brasil, em 1888, mulheres negras livres continuaram fadadas a realizar o trabalho doméstico em condições muito semelhantes ao período anterior à abolição. 

Direitos trabalhistas das empregadas domésticas foram conquistados há pouquíssimo tempo no Brasil. Só em fevereiro de 2018 o Brasil ratificou a Convenção nº 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), equiparando os direitos dos trabalhadores domésticos aos dos demais trabalhadores. 

Mesmo assim, a legislação só reconhece o vínculo empregatício da doméstica que trabalha mais de dois dias por semana. 

“O Tribunal Superior do Trabalho entende que só teria vínculo a empregada doméstica que trabalha mais do que dois dias por semana, o que é um absurdo porque isso não se aplica a nenhum outro trabalhador. São ministros e ministras com uma miopia de classe enxergando no trabalho da doméstica uma especificidade que não existe para nenhum outro trabalhador”, critica Antonio Rodrigues de Freitas Junior, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 

Apenas 42% dos trabalhadores domésticos contribuem para a previdência social e só 32% possuem carteira de trabalho assinada no Brasil, de acordo com dados do IBGE. Além disso, o trabalho doméstico é uma das ocupações com níveis de remuneração mais baixos no mundo e em condições de trabalho mais precárias. 

Para definir o crime de trabalho análogo à escravidão, o Código Penal, no seu artigo nº 149, imputa quatro modalidades:

  1. Trabalho forçado.
  2. Jornada exaustiva.
  3. Condições degradantes
  4. Restrição de locomoção. 

A pena é a prisão de dois a oito anos. Há ainda um acréscimo da metade da pena se o crime for praticado contra criança ou por preconceito de raça ou religioso. 

LexLatin conversou com uma mulher venezuelana, que prefere não ser identificada, que foi vítima de trabalho doméstico análogo à escravidão ao chegar como imigrante em Manaus em 2020. Ela conta que ficou 4 meses cuidando de uma criança em uma residência, sem receber devidamente o salário, tendo muitas restrições e sofrendo ofensas. 

“Ela [a empregadora] dizia: você não pode abrir a geladeira, não pode usar a máquina de lavar, não vai comer carne, não vai comer margarina, vai comer pão puro. Ela começou a me tirar a comida e eu comecei a ficar muito magra. Ela não queria que eu falasse no celular, ela não queria que eu saísse de casa. Ela não queria que eu falasse com ninguém. Queria me manter trancada”, conta a mulher venezuelana. 

A empregadora inventava que não conseguia sacar o dinheiro para pagar essa trabalhadora doméstica, alegando que os caixas eletrônicos não estavam funcionando por conta da pandemia. Quando a trabalhadora ameaçou ir embora, foi ofendida. Ela diz que ouviu da empregadora: “Você acha que vai triunfar aqui no Brasil? Você não sabe nem falar português. Você é uma venezuelana de merda. Você não sabe de nada”.

Essa trabalhadora disse que se manteve com repasses do auxílio emergencial que recebeu no Brasil, por causa da pandemia de Covid-19, e assim conseguiu juntar dinheiro para escapar. Mas ela não quis denunciar a empregadora.  

“Eu estava sozinha. Eu sou venezuelana, ela é brasileira. Eu estava com medo. Pensei que ela poderia me processar, me prender, dizer que eu roubei algo. Eu tinha medo. Eu não quis [denunciar]”, disse.

Freitas Junior, da USP, explica que é comum que imigrantes não denunciem patrões criminosos por medo de retaliação.  


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Além disso, frequentemente vítimas temem não ser acolhidas. Em alguns casos, paradoxalmente, a vítima acaba inclusive ajudando a ocultar tais crimes, por receio de represálias. 

“Esse estágio de vulnerabilidade excessiva associado ao receio e à falta de confiança nas autoridades é que acaba sendo um obstáculo a desencorajar a denúncia por parte da vítima”, afirma Antonio Rodrigues de Freitas Junior. 

Para o professor, ainda faltam políticas públicas voltadas para o trabalhador doméstico. “As políticas que temos até aqui são basicamente voltadas para o imigrante que foi alvo de tráfico de pessoas e para o trabalhador rural”. 

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