Conflito sobre o que é serviço essencial pode gerar ações na Justiça

União, estados e municípios criaram uma briga política em torno do que são  serviços essenciais e o que deve funcionar durante a pandemia/Pixabay
União, estados e municípios criaram uma briga política em torno do que são serviços essenciais e o que deve funcionar durante a pandemia/Pixabay
Medida que permite abertura de academias, barbearias e salões de beleza é mais um capítulo na guerra entre União, estados e municípios em plena pandemia.
Fecha de publicación: 12/05/2020

Em decreto publicado no início da semana, o presidente Jair Bolsonaro ampliou os serviços considerados essenciais, que podem abrir as portas durante o isolamento social. Foram incluídos salões de beleza, academias de ginástica e barbearias.

A medida é mais um capítulo na guerra entre União, estados e municípios que acontece em plena pandemia. Em abril, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu autonomia de prefeitos e governadores para determinarem medidas para o enfrentamento ao coronavírus.

Os ministros chegaram à conclusão de que estados e municípios podem regulamentar medidas de isolamento social, fechamento de comércio e outras restrições, diferentemente do entendimento do presidente Jair Bolsonaro, segundo o qual cabe ao governo federal definir quais serviços devem ser mantidos ou não.

Dois especialistas, que fazem parte do quadro de juristas de dois dos maiores escritórios de advocacia do país, analisam esse conflito e oferecem o ponto de vista jurídico nessa questão em entrevista a LexLatin.

Thiago Sombra é sócio de direito público empresarial do escritório Mattos Filho em Brasília. Luciano de Souza é sócio de compliance, anticorrupção e relações governamentais do Cescon Barrieu, também na capital federal.

Uma coisa eles garantem: essa briga vai gerar milhares de ações judiciais, questionando as medidas a favor e contra a abertura dos serviços essenciais durante a quarentena. Uma história que, para eles, só evidencia a confusão política que se instaurou nesse momento de emergência sanitária.

Como fica essa disputa sobre serviços essenciais, sobre o que abre ou não durante a quarentena?

Thiago Sombra:

A Lei 13.979, conhecida por muitos no meio jurídico como Lei Covid, foi regulamentada por um decreto que ampliou a lista de serviços e atividades que são considerados essenciais no Brasil durante pandemia. Isso a partir de uma perspectiva que seria de competência da União dizer o que é ou não serviço essencial.

O presidente foi lá, considerou as atividades, houve uma ação no Supremo contra algumas dessas atividades e o STF determinou que estados e municípios poderiam, de acordo com as particularidades locais, definir as restrições de horário e fechamento de alguns desses estabelecimentos. O que o STF acabou determinando é que caberia a estados e municípios uma posição também preponderante de dizer que, apesar de essencial, aqueles serviços poderiam ou não abrir.

Luciano Souza:

O STF mostrou, nas últimas decisões, que é preciso um equilíbrio, mas que prevalecem as questões locais. As decisão que governadores e prefeitos têm tomado de não acatar está em linha com o que definiu o Supremo.

Como fica esse decreto do presidente publicado essa semana sob ponto de vista jurídico?

Thiago Sombra:

Muitos têm dito é que esse decreto é inócuo (sem validade). Ele pode muito bem dizer que academia e salão de beleza são atividades essenciais. Mas de nada vai adiantar dizer isso se os governadores e os prefeitos não entenderem que, de acordo com as suas peculiaridades locais, faz sentido permitir a abertura dessas atividades.

Luciano Souza:

Por mais que Bolsonaro chegue e determine atividades essenciais, o Supremo já disse que, dentro do contexto do pacto federativo e das competências estabelecidas na Constituição, que estados e municípios têm autonomia e não compete ao governo federal vedar algum tipo de atitude nesse sentido.

Então virou um embate entre União, estados e municípios?

Thiago Sombra:

Falando da guerra política, o que se vê de certa forma é tentar jogar o poder da responsabilidade da decisão para os governadores, porque no fim das contas o presidente está numa situação confortável, já que o Supremo disse que cabe a eles a última palavra.

Se o presidente quiser incluir mais dez itens nesta lista vai ser conveniente. Ele vai só aumentar e criar uma percepção de que ele tem tentando impulsionar a reabertura da atividade econômica, mas que governadores têm resistido, a partir de suas peculiaridades locais, o que foi a eles garantido por uma liminar do STF.

Luciano Souza:

Existe claramente uma diferença de posição entre União, estados e municípios. Temos uma eleição municipal este ano. A pandemia serviu como um palco ideal para se ter uma polarização. Não é a melhor forma de discutir a pandemia, muito menos a economia. Cada um dos lados puxa a corda para si. O que pesa mais, emprego ou vida? Talvez não fosse o melhor momento para ter essa divisão, era hora de uma convergência de esforços.

O STF acabou virando um mediador dos entes federativos na sua opinião?

Thiago Sombra:

Acho que sim. Vivemos hoje um momento que, mais que a pandemia, os conflitos federativos entre os três entes têm ganhado muita notoriedade. Temos visto requisições administrativas da União pedindo monitores e equipamentos de municípios e estados. Temos visto algumas disputas acontecendo e o que a gente percebe é que o Supremo entrou no meio para assegurar as respectivas competências federativas de cada um dos entes.

Então o que se tem entendido hoje é que cada um pode, de uma certa forma, seguir o planejamento que entende conveniente, de acordo com a situação da pandemia na sua respectiva localidade. 

Luciano Souza:

Luciano Souza

O STF está sendo cirúrgico na sua atuação. O que a gente espera é que ele continue a ter a legitimidade que tem hoje e que mantenha o pacto federativo. Concordo quando Dias Tófoli [presidente do STF] disse que o Supremo seria a última fronteira das decisões da democracia e cidadania e garantia da Constituição.

Como a pandemia exacerbou o processo de quebra do pacto federativo?

Thiago Sombra:

Exacerbou porque mostrou que não há o mínimo de coordenação entre a União, estados e municípios neste momento. O maior exemplo disso é a União requisitando equipamentos que foram comprados para um estado ou município e que também seriam destinados à rede pública de saúde e ao combate do coronavírus.

Thiago Sombra

Quando esse tipo de coisa começa a acontecer, fica muito claro que a União não está mais à frente de todo processo de coordenação e de combate à pandemia e defesa da saúde pública. O que fica muito evidente aqui é que a União deseja, no fim das contas, fazer valer a predominância dela sobre estados e municípios, o que na visão do Supremo não faz nenhum sentido, já que a Constituição teria dado poderes a eles para definir suas respectivas realidades como a saúde.

Não dá para comparar, por exemplo, a situação do Amazonas ou do Ceará ou de São Paulo com aquilo que a União tem vivenciado em seus hospitais em âmbito federal. É natural que autoridades locais tenham melhores condições de definir que tipos de atividades eles planejam retomar a partir da quantidade de leitos e equipamentos que eles tenham condição de disponibilizar para a população, como máscaras e EPIs. 

Luciano Souza:

Bolsonaro está tentando desmotivar e criar um paradigma com relação às decisões do Executivo local.

Além dos serviços essenciais, quais são os outros capítulos dessa briga federativa, o que teremos pela frente?

Thiago Sombra:

O principal capítulo vai envolver uma ação que está tramitando no Supremo sobre a requisição administrativa de leitos, equipamentos, EPIs, insumos hospitalares e médicos. Essa vai ser a maior briga. Porque quanto mais a pandemia se desenvolver, mais descoordenada vai acabar aparentando a estruturação do sistema de saúde público e privado.

Já temos notícias de que a União e os estados têm brigado entre eles não só por equipamentos e leitos hospitalares, mas que têm promovido uma desarticulação do próprio setor privado de saúde. A Constituição escolheu que esse fosse um sistema complementar ao sistema público de saúde. Se a própria lei diz isso, não faz nenhum sentido agora desarticular a prestação de serviços de saúde privados, sobretudo porque eles também estão a serviço do SUS. Tem vários hospitais privados com vagas e disponibilização de leitos e equipamentos para o SUS.

Eu diria que hoje o tema mais quente da pandemia, o tema que vai revelar e exacerbar ainda mais essa disputa, será o das requisições administrativas, tanto quanto mais a pandemia se desenvolva. E essa desestruturação entre União, estados e municípios vai acabar transparecendo ainda mais.

Luciano Souza:

O próximo capítulo é a disputa de nas costas de quem vai cair a questão econômica. Vai ser exatamente a dialética política de quem deu causa a maior quebradeira. Esse discurso acontece em outros países, como os EUA, e com certeza vai chegar aqui.

Esse conflito pode gerar ações judiciais na Justiça comum e no STF nos próximos meses?

Thiago Sombra:

Vai aumentar significativamente, sobretudo porque é possível que tenhamos reclamações constitucionais sendo propostas no Supremo, para que ele decida sobre uma decisão de um determinado estado ou município de não reabrir.

Vamos supor que uma rede de academias queira reabrir, mas que não veio o decreto estadual ou municipal autorizando isso. Fatalmente eles vão querer provocar uma manifestação judicial para reabrir. E essa decisão vai acabar se conectando com aquela que o Supremo já proferiu anteriormente, na ação direta de inconstitucionalidade que estamos discutindo aqui.

E ao se conectar a essa decisão do Supremo, o que a gente passa a ter, por mais que essa judicialização aconteça em primeiro grau, vai suscitar interpretações da própria decisão do STF. Em última palavra, o Supremo vai ser acionado mais e mais para resolver disputas entre estados e municípios, em relação a atividades que a União entendeu como essenciais, mas que os governadores e prefeitos não estavam preparados e entendiam que não era o momento adequado para reabrir.

Luciano Souza:

Teremos ações que versem em questões como recuperação judicial, buscando a responsabilização do estado por atitudes tomadas, por ter aberto ou fechado. Um outro exemplo é o do comerciante de uma cidade que aderiu à quarentena, mas teve poucos casos de coronavírus registrados. Teremos conflitos privados os mais diversos possíveis. É muita coisa nova acontecendo.

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