As consequências jurídicas do rombo nas Lojas Americanas

Caso seja comprovada fraude, responsáveis poderão ser condenados por gestão fraudulenta, prestação de informações falsas ao Banco Central e divulgação de dados incorretos em demonstrativos financeiros/LexLatin
Caso seja comprovada fraude, responsáveis poderão ser condenados por gestão fraudulenta, prestação de informações falsas ao Banco Central e divulgação de dados incorretos em demonstrativos financeiros/LexLatin
Entenda o que pode acontecer com uma das maiores varejistas do mercado brasileiro e como o caso pode servir de precedente jurídico no futuro. 
Fecha de publicación: 15/01/2023

A notícia abalou o mercado financeiro e a Bolsa de Valores na semana passada. O rombo contábil de R$ 20 bilhões no balanço das Lojas Americanas ganhou ares de escândalo e abalou a reputação da companhia, que tem 3.800 lojas, quatro portais de e-commerce e vende 80 mil itens de quatro mil empresas diferentes. Tudo começou quando o CEO, Sergio Rial, que tinha assumido o cargo no início de janeiro,  identificou inconsistências contábeis no balanço e pediu demissão (ele ficou dez dias no cargo). 

A consequência veio logo em seguida: na última quinta-feira (12) o valor de mercado da Americanas, que era de R$ 14,7 bilhões, despencou 77% num único dia ― perda de R$ 8,4 bilhões. Diante dessa avalanche de más notícias, investidores denunciaram a empresa nas instâncias que fiscalizam esse tipo de companhia. 

O problema tem relação com uma forma de operação, que é uma prática corriqueira do setor: o adiantamento de fornecedores, conhecido como forfait. Esse adiantamento teria entrado no balanço de forma inadequada (ainda não se sabe exatamente como isso foi contabilizado), o que teria gerado esse rombo bilionário. “Se a companhia coloca na conta de fornecedores uma dívida que não é mais com fornecedores, mas com os bancos, fica subavaliado o quanto a empresa tem realmente de dívida”, avalia Flávio Conde, analista de investimentos do mercado financeiro.

De acordo com Rial, operações como essa, de risco sacado, uma espécie de antecipação de recebíveis a fornecedores feita por um banco contratado, é uma situação que já existia em outros anos na Americanas e é algo que não teria sido incluído em balanços passados. “Este número está dentro da estrutura atual do balanço. Só que ele não está registrado, apropriado, ao longo dos últimos anos. Acho que o tamanho do que tem que ser feito não era necessariamente aquilo que eu queria num primeiro momento”, disse Rial um dia depois de pedir demissão, numa reunião transmitida no canal do Youtube do BTG Pactual para um número limitado de participantes. 


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O detalhe é que as contas da companhia tinham passado, em anos anteriores, pela auditoria da PwC, uma das maiores multinacionais de consultoria e auditoria do mundo, o que garantiria a veracidade da demonstração de resultados. A PwC aprovou todos os balanços da Americanas sem ressalvas desde que assumiu a função, no fim de 2019, e não citou as operações de risco sacado. Por conta disso, além da varejista, a auditora internacional deve passar por investigações da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e por conselhos de classe, entre eles o Conselho Federal de Contabilidade (CFC).

Para a Americanas, o valor do rombo fiscal pode ser ainda maior. Na sexta-feira (13), a companhia conseguiu uma liminar na 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro para impedir o bloqueio e sequestro de recursos e bens. Com isso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) concedeu um prazo 30 dias para a entrada de um pedido de recuperação judicial. No pedido, os representantes da Americanas justificaram que a situação pode levar os credores a pedir o vencimento antecipado e imediato de dívidas no valor de R$ 40 bilhões. Na decisão, é mencionado um pedido de constrição, pelo BTG Pactual, de recursos da companhia em mais R$ 1,2 bilhão. Hoje, os maiores credores da Americanas são Bradesco (R$ 4,7 bilhões), Itaú (R$ 3,7 bilhões) e Safra (R$ 3,4 bilhões). 

O escândalo que abala a imagem da companhia também deve dificultar o acesso ao crédito. Um primeiro movimento foi das agências de classificação de risco: Fitch e S&P rebaixaram as notas da Americanas. 

A empresa informou, em comunicado, que um comitê independente será criado para apurar os problemas. A divulgação oficial de resultados de 2022 está prevista para 29 de março. Hoje, a companhia tem como acionistas gestoras de fundos de investimentos (Capital Group com 9,91%, TIAA com 6,05% e BlackRock com 5,05%) os bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira (responsáveis por 31,13% do capital) e outros 47,86% estão pulverizados na B3. Os maiores atingidos até agora são justamente os acionistas minoritários.

O rombo na companhia bastante conhecida dos brasileiros é equivalente ao valor de mercado do Magazine Luiza (R$ 20,2 bilhões), ou da Lojas Renner (R$ 20,22 bilhões). Com a incerteza no mercado varejista, as ações de outras companhias também caíram na semana passada.  

As consequências jurídicas do caso

Caso haja confirmação de fraude, os responsáveis poderão ser condenados por gestão fraudulenta, prestação de informações falsas ao Banco Central e divulgação de dados falsos em demonstrativos financeiros. A depender dos fatos apurados pela CVM, poderá ser instaurado processo administrativo sancionador contra os administradores ― membros do conselho de administração, diretoria e conselho fiscal ― pela violação de deveres fiduciários e desrespeito às normas contábeis. O resultado pode ser a celebração de termos de compromisso, ou a aplicação de multas, ou, a depender da penalidade, a inabilitação de acusados para o exercício de cargos de administração no mercado.

As companhias que têm suas ações negociadas na Bolsa de Valores são obrigadas a divulgar o balanço anual de suas atividades: quanto entrou em vendas e quais foram as despesas e as dívidas do grupo, por exemplo. A idoneidade dessas declarações ao mercado dá confiança para os investidores na hora de comprar cada ação. Mas quando há maquiagem nos números ou são divulgados dados imprecisos, essa confiança vai embora. O resultado: as pessoas querem se livrar da ação e o preço dela despenca.

Os acionistas minoritários já começaram a se movimentar para responsabilizar a Americanas. Há a possibilidade de ações coletivas ou acordos. "Sem dúvida, cabem medidas emergenciais por parte dos acionistas que foram prejudicados pela manobra contábil e consequente perda de valor das ações, tanto contra a empresa quanto, em princípio, os diretores”, analisa Daniel Gerber, especialista em Direito Penal Econômico e Penal Empresarial. 

Segundo ele, “o perigo de dissipação do patrimônio, a ser utilizado para reparação de danos, é evidente ― reforçado, inclusive, pela suspeita de manobras ilegítimas em que houve tanto a venda antecipada de ações quanto retornos milionários para posições que estavam short”. Gerber alerta que “tais providências servem, inclusive, para pavimentar um possível acordo geral entre os interessados".

Em relação à discussão da responsabilidade civil dos administradores, os acionistas poderão convocar assembleia para aprovar o ajuizamento de ação de responsabilidade nos termos do art. 159 da Lei das SA. Se a assembleia geral rejeitar a proposta, a ação poderá ser proposta por acionistas que representem 5%, pelo menos, do capital social. 

“A responsabilização dos diretores e conselheiros é bem provável neste caso, mas dificilmente será suficiente para cobrir os prejuízos sofridos pelos investidores. Em um passado recente, acionistas da Petrobrás, JBS e IRB tentaram responsabilizar a própria companhia pelos danos sofridos, mas não se tem notícia de nenhum caso com desfecho favorável aos investidores até o momento. A legislação brasileira, ao contrário da estadunidense, não prevê a responsabilidade da própria companhia por danos causados pela sua administração”, explica Pedro Almeida, especialista em Contencioso Empresarial e Arbitragem no GVM Advogados. 

“Então, a disputa será resolvida em processo arbitral e, caso a companhia não observe o procedimento previsto na lei, acionistas minoritários poderão instaurar o procedimento. Qualquer acionista poderá promover a ação, se não for proposta no prazo de 3 meses da deliberação da assembleia geral. É importante frisar que, nesse caso, o pagamento da indenização será revertido para a companhia, com o devido ressarcimento das custas do processo se tiver sido proposto por acionistas”, afirma Isac Costa, sócio do Warde Advogados, especialista em Mercado de Capitais e professor do Insper e do Ibmec de São Paulo.

Uma alternativa possível, segundo advogados especialistas da área, será pleitear a responsabilização dos auditores independentes, por se tratar de uma questão estritamente contábil. No exterior, existem alguns precedentes que permitem cogitar essa possibilidade.

Em virtude de operações suspeitas, a CVM e o MPF deverão investigar ainda se alguém que já sabia sobre a irregularidade e que o fato seria divulgado se antecipou e evitou o prejuízo ou lucrou com a queda dos preços das ações, o chamado insider trading


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Investidores em títulos e valores mobiliários nos Estados Unidos poderão pleitear ressarcimento por meio de class actions e resultar em indenizações a serem pagas pela companhia. No Brasil, a empresa não pode ser diretamente condenada a pagar a indenização, de acordo com entendimento majoritário, mas há vozes que discordam dessa tese. No passado recente, o tema envolveu a instauração de arbitragem coletiva contra a Petrobras para obter ressarcimento junto à companhia. Enquanto a class action no exterior culminou em acordo, no Brasil os investidores não tiveram êxito.

Em relação à recuperação judicial, por ora, os credores devem esperar, na visão dos especialistas. “Quando deferido o pedido de processamento, a proteção dura 180 dias, prorrogável por mais 180 e, nesse ínterim, há um prazo de 150 dias para que os credores deliberem sobre o plano de recuperação judicial”, explica Costa.

A recuperação judicial pode permitir a repactuação de dívidas com credores da empresa e, principalmente, proteger o patrimônio após o deferimento do pedido contra execuções, evitando agravar a situação de insolvência. “O pedido se justifica como medida preventiva para salvaguardar o funcionamento da companhia até que seja possível tomar medidas para contornar a crise, permitindo a atuação de comitê especialmente constituído para isso. Causa certa surpresa o segredo de justiça, mas é possível que a não divulgação de informações sensíveis neste momento possa tutelar interesse legítimo para assegurar a estabilidade das ações para restabelecer a credibilidade do mercado na companhia, sem prejuízo de tudo ser devidamente divulgado posteriormente”, analisa Costa.

Há ainda a discussão na esfera tributária. A companhia pode ser cobrada por impostos que deixou de pagar, se declarou valores diferentes dos reais, e ser processada por investidores que perderam dinheiro. 

Outra questão importante e que serve para todo o mercado é a necessidade de reforçar o cuidado com o departamento de compliance, que tem muito a aprender com o escândalo da Americanas. "O compliance é um estandarte do departamento jurídico e dos escritórios externos que apoiam a empresa nesse tema, mas ainda é visto como um mero formulário, treinamento online ou presencial obrigatório para o restante da empresa. A independência e poder dos compliance officers e dos consultores externos que auxiliam na compreensão e observância das regras ainda é uma realidade a acontecer. O evento Americanas pode ser um importante 'presta atenção' para as organizações", avalia Alessandra Mourão, sócia fundadora do escritório Nascimento e Mourão Advogados.

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