O que fazer com criptoativos apreendidos?

Senado brasileiro iniciou debate sobre regulação de operadores; o que fazer com bens apreendidos ainda deve ser interepretado/ ANTANA via Flickr
Senado brasileiro iniciou debate sobre regulação de operadores; o que fazer com bens apreendidos ainda deve ser interepretado/ ANTANA via Flickr
Lei brasileira é ampla sobre o tema, mas desafios devem se tornar complexos no futuro.
Fecha de publicación: 02/03/2022

Em 2021, a Justiça Federal se deparou com um problema inédito em sua atuação: vender criptoativos, entregues de maneira voluntária pelo suposto autor do crime, com o objetivo de reparar possíveis vítimas. O método clássico do leilão previsto no Código de Processo Civil, que dá vazão a casas, carros e bens apreendidos, não é cabível para moedas como a Bitcoin - afinal nenhum leiloeiro se considera habilitado para tal operação. A solução encontrada foi a venda por uma exchange, quase que como uma casa de câmbio de moedas digitais, mas mesmo isso foi sujeito a risco: o alto volume de ativos à venda, de uma vez, poderia desvalorizar bruscamente seu valor. Quem custodiou o ativo correu riscos. E a operação ocorreu à margem do que a lei indicou.

Esse mecanismo improvisado, apontado por um dos especialistas ouvidos por LexLatin, indica o quão complicados e ainda incertos podem ser os caminhos a serem adotados por governos como o brasileiro no tratamento de criptoativos, utilizados cada vez mais como investimentos de origem lícita ou ilícita. Em um país como o Brasil, que lidera as transações de ativos virtuais no cone sul ao lado da Argentina, essa regulação deve se tornar cada vez mais necessária em um futuro próximo.


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O Senado brasileiro tem avançado nesta questão. Na última semana, os parlamentares que integram a CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) deram parecer favorável ao PL 3.825/2019, que regulamenta diretrizes a serem observadas na prestação de serviços pelas operadoras de criptoativos no Brasil. O texto, que ainda tem um longo caminho pelas duas casas do Congresso, é um início de regulamentação sobre o tema, e vem após pressão da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) para que o Legislativo enfrente a questão.

O texto trata da definição do que seria um ativo virtual (“a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento”), as diretrizes que operadoras de câmbio e o governo devem seguir, e até onde vai a atuação do Banco Central no controle destas operadoras. Caso o projeto vire lei, o Legislativo deixará ao Executivo, no entanto, dará a palavra final sobre quem fiscalizará a operação.

O avanço brasileiro parece estar ficando para trás em relação a outros países da América Latina. Há o peculiar caso de El Salvador, que passou a adotar o Bitcoin como moeda oficial e regulamentou a Lei Bitcoin em setembro. Bastante afetado por sanções econômicas dos Estados Unidos, a Venezuela também já avançou legalmente no tema após o governo criar a Petro, sua própria moeda virtual desde 2017. Há casos como a Bolívia, que proibiu de uma só tacada a operação de criptoativos e o México, que permite seu uso apenas em operações internas de instituições financeiras.

 

No entanto, à medida que a operação com criptomoedas passa a se tornar cada vez mais corriqueira, com o termo “Bitcoin” deixando de ser desconhecida de parte da população, seus usos ilícitos passam a se tornar também mais frequentes. Um esquema de pirâmide no estado do Rio de Janeiro escancarou uma fraude bilionária envolvendo um ex-garçom convertido em “Faraó dos Bitcoins”; em São Paulo, a Polícia Civil investiga investimentos em criptoativos envolvendo o PCC (Primeiro Comando da Capital), uma das principais facções criminosas do país.

 

Juliana Abrusio, sócia do Machado Meyer, e Marcelo de Castro, advogado do mesmo escritório, ponderam que não existe nenhuma regra em específico para como as autoridades devem proceder. “Via de regra, a busca e apreensão de criptoativos é feita de acordo com as regras do Código de Processo Civil”, diz Marcelo. “O que está na lei em geral vale para todo ativo proveniente de crime”.

O problema começa a partir daí: onde estão custodiados estes ativos e, principalmente, como movimentar o ativo caso o portador original não queira ceder as chaves de acesso para tal. os desafios seguem quando se discute quem fará a custódia deste “depósito judicial”, e o que fazer com estes ativos durante o processo. Se uma moeda virtual se valorizar fortemente nesse período, quem iria arcar com prejuízos do seu dono?

Juliana aponta um problema ainda mais abstrato nesta situação: criptoativos - supostamente únicos por sua natureza - não podem ser apreendidos pelas autoridades. “Qualquer informação digitalizada, no Judiciário, se trabalha com o remédio da ‘busca e apreensão’, entre aspas, porque não se consegue sair com o servidor embaixo do braço”, explica. Um perito, acompanhado de representantes das partes, fazem uma espécie de clonagem, comprovando que cópia e original são fidedignos e semelhantes, do arquivo que servirá de prova.

Como isso será aplicado às NFT, arquivos que supostamente são únicos e originais, ainda são fruto de debate. “Juridicamente isso tem uma série de desdobramento, seja no direito autoral, seja em outros ramos do direito”, explica a advogada.

Pedro Simões, coordenador da Equipe de Penal Empresarial e Compliance do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, concorda que não há restrição para o que pode ser apreendido, desde que seja fruto de crime. “As barreiras para isso são de natureza tecnológica”, disse.

O advogado aponta que há diversas normas atualizadas com o conceito de “abordagem baseada em risco”, que o Senado sugere que seja uma diretriz a ser adotada pelo regulador. Normas do Banco Central, CVM e Superintendência de Seguros Privados (Susep) seriam algumas que já estariam alinhadas neste sentido.


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André Salgado Felix, sócio do escritório Ernesto Borges Advogados, diz que o projeto de lei do Senado quase não altera o dia-a-dia de quem opera criptoativos. Por estar bem aderente à realidade de corretoras e outros operadores, deverá ser bem aceita pelo mercado.

 

André, no entanto, enxerga que a proposta hoje no Senado pode ajudar as autoridades no futuro a tratar com bens obtidos de maneira ilícita. “O PL não trata diretamente, porém as definições nele são capazes de interpretações analógicas para realizações de possíveis apreensões”, concluiu.

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