O anúncio da criação de uma moeda única que cubra as transações comerciais no Mercosul, anunciada no final de janeiro pelos presidentes da Argentina e do Brasil, tem sido duramente criticado por analistas e especialistas da área. Argumenta-se que a proposta enfrenta muitos obstáculos para se concretizar com a urgência a que aspiram seus proponentes.
A proposta, feita por Luís Inácio Lula da Silva e Alberto Fernández, antes da reunião de presidentes e chefes de estado da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), aparentemente marcou o início das negociações entre as duas grandes economias sul-americanas para criar, essencialmente, uma moeda que rege os processos comerciais entre as duas nações, mas que futuramente seria estendida a todos os países membros do Mercosul.
A tarefa de criar essa moeda única não será fácil: embora haja poucos detalhes sobre o funcionamento do idílico instrumento, seria uma terceira moeda que coexistiria com o peso argentino e o real brasileiro, uma coabitação que vários analistas consideram pouco ajuda para o fortalecimento das economias nacionais e intercâmbios fronteiriços.
De ideologias e economia
Segundo expressou Lula da Silva, a nova moeda viria para evitar a dependência do dólar, que segundo alguns analistas tem mais a ver com uma estratégia geopolítica e ideológica do que com uma abordagem econômica real, pois uma política sólida exigiria fortalecimento das bases de uma moeda comum.
“Se o que você busca é criar uma moeda para ser negociada sem mexer no dólar, acho que não vai adiantar muito”, diz Henkel Garcia, Diretor-fundador da consultoria financeira Albusdata.
García também lembra que os dois sócios proponentes não passam pelos melhores cenários e carecem da seriedade fiscal e política que tal proposta exige.
Assim que a turbulência causada por sua eleição se acalmou, Luiz Inácio Lula da Silva encontrou um Brasil muito diferente daquele que deixou para trás em sua primeira presidência. O real perdeu quase metade de seu valor, desde 2014, até atingir uma taxa de câmbio que, até 30 de janeiro, marcava 5,12 reais por dólar, enquanto a inflação se manteve em 2022 quase nos mesmos níveis do ano anterior (o segundo da pandemia) e fechou em 5,9%.
Enquanto isso, na Argentina, as águas da política estão agitadas há algum tempo e essa agitação foi uma das causas de uma crise econômica silenciosa, mas implacável, que levou o país a ser o segundo país com maior inflação da região (94,8% em 2022), enquanto a moeda norte-americana continua em alta e fechou, em 30 de janeiro, a 186,60 pesos por dólar.
"Ambos os países se caracterizam por ter problemas para manter a ordem fiscal e monetária que exige o estabelecimento de uma moeda única", diz García, cuja opinião concorda com a de Gabriel Oddone, doutor em economia e professor da Universidade da República do Uruguai, que recentemente comentou que, sem mercados (de bens, trabalho e finanças) e instituições fiscais integradas, a ideia de uma moeda única é no mínimo “ridícula”.
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Sem sustentação
"O que se sabe dessa proposta não é exatamente a criação de uma moeda única que circule nos dois países, mas uma terceira moeda paralela ao real e ao peso para aprofundar a integração comercial dos dois membros fundamentais do Mercosul", comenta o economista venezuelano e especialista em finanças internacionais, Leonardo Vera, para quem a ideia lançada é apenas o início de uma longa caminhada que poderá, se as coisas correrem bem, resultar numa moeda única a longo prazo.
Sua colega, a economista argentina Diana Mondino, pensa algo parecido, garantindo que, por enquanto, o anúncio não passa de manchete de jornal. “Se for uma moeda virtual, não será usada”, disse ela em conversa em streaming com o analista Marcelo Trovato, lembrando que as grandes assimetrias entre Brasil e Argentina dificultam a manutenção da estabilidade de uma moeda binacional.
"Levaria décadas para conseguir harmonizar políticas fiscais, monetárias, previdenciárias, trabalhistas e outras. O fluxo de mercadorias teria que ser muito dinâmico, e isso é algo que deixou de acontecer, porque o Brasil está produzindo o que antes importava da Argentina", estreitou o economista.
Para defender sua posição de que a relação de complementaridade existente entre os dois países no início do Mercosul foi distorcida, a diretora de Assuntos Institucionais da Universidade CEMA lembra que o déficit comercial da Argentina, em relação ao vizinho, é de 3,6 bilhões de dólares. Isso implicaria que, para amenizar essa lacuna, seria preciso que Brasília, de posse da moeda comum, quisesse vender 'certificados' a Buenos Aires, que teria de queimar mais dólares para comprá-los. Em suma, o fosso, em vez de diminuir, aumentaria.
'Açúcar' vs 'Sul'
As tentativas de estabelecer uma moeda única na América Latina não são novas. Há apenas uma década, os países da chamada Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA) formalizaram uma proposta feita pelo falecido Hugo Chávez e adotou o sucre (açúcar) como moeda transacional entre eles, esperando algum dia convertê-lo em dinheiro real à imagem do euro.
O sucre serviu basicamente como unidade de conta, mas não como moeda livremente conversível, marcando o valor para o pagamento de certas transações entre os países aliados, mas que acabou em desuso após a crise econômica que abalou (e continua a abalar) a Venezuela que, junto com a Bolívia, foram as nações que mais utilizaram o mecanismo.
No entanto, o sul (como tem sido chamada a moeda) não precisa ser uma moeda física, mas pode ser uma moeda para lançamentos contábeis que pode até ser livremente conversível em cada país, se assim for estabelecido pelo banco, esclarece Vera.
E aí estaria outro grande problema: estabelecer paridades cambiais, algo que pode ser bastante complicado, principalmente para a Argentina, devido à alta inflação sofrida pela economia do sul e às dificuldades de acesso a um mercado de câmbio com várias taxas de câmbio.
Embora reitere que, pelo menos por enquanto, não vê grandes vantagens em estabelecer uma moeda única no bloco, Henkel García acredita que nas atuais circunstâncias ela serviria como uma "válvula de escape" para os exportadores argentinos, pois lhes permitiria superar as armadilhas que causa o acesso limitado a divisas. No entanto, reafirma que em todos os países da região persiste a convicção de se refugiar no dólar como moeda transacional.
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Alguns números
Durante 2021, o comércio dentro do Mercosul mobilizou um total de 41 bilhões, valor que se traduz num aumento de 42% face aos dados do ano anterior e de 24% em relação a 2019.
O bloco comunitário aponta que esses valores são os mais altos alcançados desde 2014 e se explicam, fundamentalmente, pela troca de bens de alto valor agregado.
Em relação ao intercâmbio comercial do bloco com o resto do mundo, 2021 estabeleceu outro recorde, chegando a 598 bilhões de dólares. As exportações do Mercosul para fora da zona também atingiram um valor recorde de 339 bilhões de dólares nesse mesmo ano, um aumento de 35% em relação aos números de 2020 e de 26% em relação a 2019.
Ao se referir às importações fora da união, o relatório da agência destaca que elas atingiram o maior patamar dos últimos sete anos, registrando alta de 39% na comparação anual e superando em 18% os níveis de 2019. Isso permitiu ao bloco atingir um superávit na balança comercial de 79 bilhões de dólares, atingindo o maior valor desde a constituição do bloco, em 1991.
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