A esquerda da América Latina diante do apetite dos investidores

Gabriel Boric (Chile); Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil); Alberto Fernández (Argentina); Luis Manuel López Obrador (México) e Gustavo Petro (Colômbia)./ Fotos oficiais.
Gabriel Boric (Chile); Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil); Alberto Fernández (Argentina); Luis Manuel López Obrador (México) e Gustavo Petro (Colômbia)./ Fotos oficiais.
A moderação tem prevalecido entre os líderes progressistas, especialmente aqueles que governam as cinco maiores economias da região.
Fecha de publicación: 31/01/2023

As previsões globais para este 2023 não são incertas. De fato, os líderes da economia global reunidos na edição de 2023 do Fórum Económico Mundial em Davos, na Suíça, têm alertado para a possibilidade de uma recessão ou desaceleração, marcada pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia iniciada em fevereiro de 2022 e sem sinais de terminar.

Nesse cenário, impõe-se moderação para a nova geração de governos de esquerda que, desde 2018, vem ganhando terreno na América Latina. Segundo especialistas, esse grupo é bem diferente do anterior que dominou a região na primeira década deste século em diferentes pontos. Esta 'maré rosa', como descreve Miguel Martinez Meucci, Cientista político da Universidade Austral do Chile, tem origem na pandemia de COVID-19.

“Embora haja aumento nos preços das commodities, muitos países dentro e fora da região vivem uma recessão econômica e uma dinâmica inflacionária significativa, então agora será mais difícil usar o gasto público para governar”, afirma Martínez Meucci.

Mudança de discurso

Com efeito, as condições na região como no mundo diferem dos tempos em que Hugo Chávez, Lula da Silva, Néstor Kirchner, Rafael Correa, Evo Morales e Daniel Ortega percorreram o continente pedindo uma "mudança radical" para uma esquerda que o falecido venezuelano chamou de "socialismo do século XXI" (termo copiado do sociólogo alemão Heinz Dieterich), uma corrente que tinha pouco da ideologia marxista e bastante do liberalismo.

E se o futuro pode ser julgado por experiências recentes, as evidências de moderação são óbvias. Desde 2018, quando conquistou a presidência, o discurso inflamado de Andrés Manuel López Obrador não causou grandes estragos na economia mexicana, que ainda se destaca como a segunda mais importante da região e como a passagem segura que liga o norte desenvolvido ao sul continental emergente.

A Argentina, governada desde 2019 por Alberto Fernández, talvez seja a nação que mais tem sofrido entre as grandes da vizinhança, mas sua crise tende a ser mais estrutural do que provocada por ideologias antiquadas. Enquanto o Chile, com Gabriel Boric na vanguarda, mantém intacta sua preeminência como uma das economias mais confiáveis ​​da América Latina.

Na Colômbia, a incerteza gerada pelo triunfo de Gustavo Petro tem diminuído devido a ações muito distantes do que foi anunciado pelo ex-guerrilheiro durante sua campanha presidencial; enquanto o temido retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da maior e mais rica nação do subcontinente é dissipada por um discurso sereno, embora ainda seja muito cedo para falar.

Jaime Reusche, sênior de créditos na Moody's Investor Service, agência de classificação de crédito da Moody's Corporation, acredita que quase todos os países da região tiveram que redirecionar seus recursos para gastos sociais para resolver os problemas derivados da alta inflação, que, juntamente com o aumento do crédito, reduziu significativamente seu campo de atuação, o que também afeta os regimes de esquerda.

"Nesse sentido, vemos que há pouco espaço de manobra para governos de todas as vertentes políticas da região, o que dificulta projetar se esses governos conseguirão se manter no poder após o término de seus mandatos e não haverá oscilação no pêndulo político. Isso vai depender da rapidez com que o choque inflacionário se dissipa e da eficiência dos gastos fiscais em aplacar as demandas sociais", diz o analista.

O que o futuro reserva?

Em termos gerais, espera-se que, embora desacelerada, a economia planetária tenha um leve crescimento em 2023. Para a América Latina, tanto o Banco Mundial (BM) quanto a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL, escritório da ONU para a região) projetam uma expansão de 1,3%, menos da metade do aumento de 3,7% estimado para 2022 e bem aquém dos 6,7% registrados em 2020. Mesmo assim, as perspectivas para processos de fusões e aquisições e investimentos em geral continuam positivas.

“Embora o desenvolvimento da região é incerto, estamos otimistas e vemos que o que mais afetou o dinamismo são fatores externos que afetaram a inflação e o câmbio, por exemplo, a alta das taxas em função da inflação (principalmente nos Estados Unidos), a desaceleração na China e a guerra na Ucrânia”, diz João Filipe Vera, sócio da área comercial e M&A da Cuatrecasas, em Bogotá.

O aumento das taxas de juros e, com isso, do financiamento é um dos maiores entraves que afetarão o crescimento regional e global, de mãos dadas com a alta inflação que segue dominando a pauta em todo o planeta.

Tom conciliatório - Colômbia

No caso da Colômbia, Vera destaca que, salvo alguns setores muito específicos, a chegada do novo governante ao Palácio de Nariño não teve nenhum efeito na economia, avaliando que os índices de consumo continuam altos e "o clima de investimento por enquanto permanece inalterado”.

Quanto ao mercado de fusões e aquisições, ele destaca que,  como sempre, a tendência política terá alguns efeitos sobre ele, o que, de alguma forma, ajuda a dinamizá-lo.

“Sempre haverá oportunidade para os mais conservadores saírem de seus investimentos e outros, com apetite oportunista, entrarem com taxas de desconto interessantes. No caso da Colômbia, alguns setores mais atingidos do que outros geraram movimentos dessa natureza e outros estimularam o investimento”, diz o sócio da Cuatrecasas, Colômbia.

Um exemplo disso é que as políticas do novo governo em relação à redução de emissões — o que significa a cessação da extração de petróleo, gás e carvão a longo prazo — tem despertado interesse em investimentos em projetos de energia renovável.

Da mesma forma, os especialistas da sede colombiana daCuatrecasas antecipam que a infraestrutura será outro setor de interesse para investir, enquanto o movimento de empresas familiares e tradicionais que buscam diversificar seus investimentos cria novas oportunidades para os interessados ​​dentro e fora do país para mobilizar seu capital.

Por outro lado, vale ressaltar que o discurso contra a indústria do petróleo que caracterizou a campanha de Petro mudou assim que ele assumiu a presidência, deixando claro que o governo reconhece a relevância e a contribuição que a mineração traz para a economia, portanto, qualquer medida a esse respeito será aplicada gradativamente e não radicalmente, como se temia.

"Acreditamos que o governo vai se manter nessa linha ao longo de sua gestão", diz Vera.

Jaime Reusche concorda com o advogado, lembrando que, embora durante a campanha de Petro a prioridade fosse cortar a exploração de hidrocarbonetos, ele teve que mudar o discurso e estão implementando subsídios caros aos combustíveis, justamente porque o aumento dos preços devido à inflação está afetando fortemente os cidadãos.


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O gigante não vacilou - Brasil

Com um PIB de 1.608 milhões de dólares em 2021, segundo a CEPAL, o Brasil mais do que ganhou o apelido de gigante do sul e, por isso, qualquer mudança política é percebida como um sinal para todo o continente.

É por isso que a volta de Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto despertou desconfiança, embora tenha se dissipado diante de um político muito mais moderado do que o ex-sindicalista que governou o país entre 2003 e 2011.

Por quê? Basicamente porque o Brasil de hoje não tem a solvência de uma década atrás e as pesquisas diziam algo bem diferente do que naquela época: a vitória de Lula com 50,90% dos votos contra 49,10% do ex-presidente Jair Bolsonaro mostra um país dividido ao meio, onde não há espaço para a mesma agenda política de antes.

"As primeiras medidas econômicas relevantes tomadas pelo governo parecem indicar outro tipo de perfil de política econômica, mais voltado para a captação de recursos. A ampliação do espectro de contribuintes do Imposto de Renda e a definição de uma linha mais fiscalista nas decisões tributárias mostram um início que tende a ser divergente”, afirma Jayme Petra de Mello Neto, coordenador jurídico do Marcos Martins Advogados Associados, de São Paulo.

O especialista acredita que, sendo o Tesouro mais forte dos países ligados à esquerda latino-americana, o Brasil cumpriria um papel semelhante ao da Alemanha na zona do euro, assumindo o status de investidor nesses países relacionados, o que faz com que o mercado local de fusões e aquisições (e, portanto, os investimentos) perca relevância para focar em uma das 10 nações da órbita esquerdista da região.

Aprofundando-se no tema de M&A, Mello Neto acredita que essas operações estarão muito mais voltadas para a satisfação de uma necessidade de caixa para o faturamento produtivo do que para o crescimento de grupos empresariais por aquisição de mercado.

“O tom das equipes econômicas dessas economias é enfatizar a demanda, incentivando muito mais as pessoas do que as empresas”, diz.

O escritório brasileiro estima que as fusões e aquisições serão menos intensas do que as operações de financiamento internacional, tendo em vista que os recursos domésticos tendem a ser direcionados à demanda como forma de compensação social e não à produção. Assim, antecipa que as operações de captação de recursos externos com base em instrumentos de dívida serão mais recorrentes do que as operações de promoção de capital (equity).

Bom, mas nem tanto - México

Pioneira dessa nova onda rosa no continente, a chegada de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) à presidência mexicana não teve grandes impactos na economia, além dos temores iniciais e, embora o México não tenha escapado dos altos e baixos das finanças internacionais, continua a desempenhar um papel importante como representante latino perante o Canadá e os Estados Unidos.

De fato, a décima reunião de presidentes do Acordo de Livre Comércio da América do Norte, realizada recentemente na Cidade do México, deu um impulso à política econômica do governo, levando em conta as palavras do primeiro-ministro canadense Justin Trudeau, que destacou que, juntas, as três nações formam uma potência econômica que supera a União Europeia.

No entanto, nem todas as opiniões são favoráveis. Anjo Escalante Carpio, sócio fundador da Escalante & Asociados, destaca que uma oportunidade histórica de crescimento se apresenta com os Estados Unidos e Canadá devido ao rearranjo das cadeias produtivas (nearshoring) e à busca pela promoção da energia verde na região.

“No entanto, esta oportunidade está sendo pouco aproveitada devido às duras políticas da esquerda mexicana e à falta de segurança jurídica”, diz o advogado.

Além disso, considera que a relação de AMLO com o setor privado tem sido “extremamente dura”, sobretudo devido à agressiva política fiscal aplicada, que – assegura – tem “sacrificado” a segurança jurídica dos contribuintes.

Alguns dados podem apoiar essa posição. Segundo estimativas do Banco Mundial e de outras entidades financeiras, em 2022 o México teria crescido 1,4%, o que projeta que, durante o mandato de AMLO, o crescimento médio será de 0,6%, o menor recorde recente, exceto pelo mandato de seis anos de Miguel de la Madri.

Em relação aos processos de fusões e aquisições, Escalante Carpio reconhece que o México continua sendo um mercado atrativo por sua relação com os Estados Unidos e o Canadá, mas sente falta do dinamismo de alguns anos atrás.

As estatísticas da CEPAL dão razão ao especialista. Segundo dados preliminares, estima-se que, em 2022, as operações de fusões e aquisições no México totalizaram 12,2 bilhões de dólares, uma queda de mais de 50% em relação ao período anterior.

Em contrapartida, o Ministério da Economia estimou que, no final do terceiro trimestre de 2022, a economia asteca havia captado 32.147 milhões de dólares em investimento estrangeiro direto, um aumento de 29,5% em relação ao mesmo período de 2021.

 


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Mercado complexo

Embora a opinião dos especialistas consultados no Brasil e na Colômbia mostre confiança em 2023 com resultados moderadamente positivos, outras análises tendem a ser menos otimistas. Assim, e com base nos resultados de 2021, a CEPAL estima que a América Latina e o Caribe vêm perdendo espaço para investimentos.

Em seu relatório “Investimento Estrangeiro Direto na América Latina e no Caribe 2022”, a Comissão aponta que, em 2021, a região recebeu 142,794 milhões de dólares em capital estrangeiro, 40,7% a mais do que em 2020, “mas este crescimento não foi suficiente para atingir os níveis pré-pandemia”. De fato, a área recebeu apenas 9% do total do investimento estrangeiro mundial, um dos menores percentuais dos últimos 10 anos e longe dos 14% registrados em 2013 e 2014.

O mesmo pode ser dito dos processos de fusões e aquisições. Segundo um relatório recente publicado pela consultoria Refinitiv, em 2022 o valor regional envolvido neste tipo de acordo foi de 86 bilhões de dólares, uma queda de 35% em relação ao período anterior.

Apesar disso, vários analistas antecipam que este ano o setor terá uma recuperação de 20%, tendo em vista um possível rearranjo de investimentos em escala global devido à saída de capitais da Rússia e da China, bem como as sempre boas expectativas que oferecem as várias nações da região sob a proteção da abundância de matérias-primas.

Jayme Petra de Mello Neto não descarta que, em alguns casos, haja restrição total do crédito público às empresas, tornando as fusões e aquisições uma alternativa ao endividamento como forma de suprir uma necessidade de trabalho.

Jaime Reusche acredita que tanto os investidores locais como estrangeiros continuam muito cautelosos e preferem realizar lucros e dividendos em vez de tentar reinvestir em muitos setores da região, pois o custo do capital aumentou em linha com os custos de financiamento, que é um impedimento para investimentos e fusões.

“Se somarmos a isso a incerteza gerada pelas possíveis viradas bruscas nas agendas de governo das novas autoridades que chegam ao poder e um ambiente social aquecido, então vemos que no geral o investimento total na região em relação ao PIB será abaixo da média da década pré-pandêmica", enfatiza.

Apesar disso, o analista da Moody's acredita que tudo dependerá da estabilidade jurídica oferecida pelos países independentemente do matiz político do governo, bem como das vantagens comparativas de cada nação no suporte aos rendimentos dos investimentos "apesar da incerteza que a esfera política ou social possa gerar", afirma.

China no panorama

Por outro lado, não se pode subestimar o interesse da China na região, baseado em negócios e não em ideologia, que tem servido apenas como um veículo de comunicação para aliviar as formalidades.

Como a grande economia apoiada no comunismo, desde o início do século o gigante asiático vem se posicionando na América Latina, principalmente em países que lhe são ideologicamente relacionados. Assim, os pioneiros Cuba e Venezuela foram seguidos por outras nações como Argentina, Equador, Brasil, México e Nicarágua, onde os vínculos com o país asiático cresceram exponencialmente.

Na verdade, recentemente Equador e China anunciaram o fim das negociações para a assinatura de um acordo de livre comércio que permitirá ampliar as já frutíferas relações comerciais entre as duas nações, cujo valor supera os 10 bilhões de dólares, segundo informações do Ministério da Produção do Equador.

Importante salientar que, antes da pandemia e apenas na área das infraestruturas, a China tinha projetos na ordem dos 18 milhões de dólares na região e estima-se que, entre 2015 e 2020, empresas privadas e paraestatais chinesas investiram cerca de 74.850 milhões de dólares nos países desta parte do mundo.

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