
A máxima “crise é sinônimo de oportunidade” pode ser o prenuncio do momento econômico para as operações de fusões e aquisições na América Latina. A Europa e os principais países do bloco, por mais que não queiram se envolver no conflito entre Rússia e Ucrânia, sofrem as consequências de embargos comerciais e a incerteza do que pode vir nos próximos meses. A pandemia, apesar de controlada em muitos países, ainda é um sinal de alerta para o mercado.
E estes são dois fatores que estão influenciando de forma decisiva as operações de M&A no mundo, mas que estão trazendo, pelo menos até agora, bons ventos e possibilidades para empresas da região. Essa análise é quase um consenso para boa parte dos advogados das principais firmas da América Latina, Estados Unidos e Europa que participam da conferência da International Bar Association (IBA) Mergers and acquisitions in Latin America in a challenging world (Fusões e aquisições na América Latina em um mundo desafiador, em tradução livre), que está acontecendo em São Paulo e termina nesta-quarta-feira (4).
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Na pauta de quase todos os debates esses são assuntos obrigatórios da agenda. Para os especialistas, a palavra “incerteza” ainda vai ser muito pronunciada em 2022 e 2023, especialmente em fusões e aquisições. E isso, claro, afeta a percepção de risco dos investidores, porque ainda há dúvidas sobre a efetiva retomada econômica, com a possibilidade de novas variantes da Covid-19, além de um possível comprometimento das cadeias de suprimentos em diversos países e setores da economia, caso a guerra persista, com uma possível escalada de violência do conflito.
Para muitas firmas e advogados, esse clima de instabilidade não é exatamente uma novidade: faz parte da rotina que assombra os países da região há pelo menos 30, 40 anos. Assim, muitos aprenderam a conviver com o incerto, o que pode ajudar no momento em que investidores procuram bons negócios.
Mas a questão que para muitos importa nesse debate é se a indústria jurídica vai ser capaz de aproveitar as oportunidades que estão e ainda vão aparecer no horizonte. E também se outros setores, como educação, saúde e infraestrutura também podem aproveitar desse momento.
“Em geral a região deveria estar se beneficiando das receitas gerais das commodities e otimizar vários setores que estão para trás. Tem muita oportunidade acontecendo hoje em dia. Para o Brasil, os setores ativos são óleo e gás, tecnologia e saúde. Para os investidores, [é preciso] muita dedicação para o setor de infraestrutura. Vai vir muito dinheiro, porque a América Latina, em geral, tem uma infraestrutura ruim e boas oportunidades de investimentos. Para os advogados, é um bom momento para estarem próximos dos corporates e investidores financeiros”, analisa Cassio Gouveia, managing director do Itaú BBA, um dos maiores bancos corporativos e de investimento em toda América Latina.
Nesse mercado em crescimento, a palavra “resiliência” é comumente pronunciada, porque há setores emergentes, moedas depreciadas, além de uma forte tradição de fusões e aquisições transfronteiriças, reforçada pela tendência internacional para a globalização.
Outra discussão é que a pandemia também acelerou a implantação de formas de negócios virtuais e remotas, que já vinham sendo utilizadas em outras regiões, facilitando as transações. O problema é o ambiente de incerteza sobre possíveis mudanças nos governos, políticas públicas, regulamentação, cenários sociopolíticos e assim por diante, algo que pode diminuir o entusiasmo dos investidores.
“A América Latina é como um pêndulo. Nós vamos à esquerda por um tempo, depois para a direita por outro. Mas a região está aprendendo a manejar esse pêndulo. Todo mundo já está se preparando para que fiquemos à esquerda e como devemos fazer para continuar [realizando transações]. Uma discussão interessante que vimos aqui é do mercado, dos banqueiros dizendo que se vai para a esquerda não será o fim do mundo, não será um cisne negro, vai ser um cinza, que podemos trabalhar”, diz Sergio Michelsen, do escritório Brigard & Urrutia de Bogotá, na Colômbia. Ele foi um dos moderadores do painel “O efeito cisne negro: como a Covid-19 afetou o cenário de fusões e aquisições na América Latina”.
No caso do Brasil, há uma diferença, na avaliação do advogado, entre o discurso de dentro do país e a percepção de fora. “Conversando com alguns brasileiros, muitos dizem que se está Lula ou Bolsonaro não há tanta diferença. Nós, de fora, vemos o atual presidente como extrema direita e Lula como centro-esquerda. Pensamos que se o caminho vai para essa segunda opção, isso conjuga com uma esquerda no Chile, no Peru, na Colômbia e na Argentina. Para nós, a esquerda não é um problema, mas sim o populismo e a corrupção. E isso pode ser uma oportunidade perdida para toda a região com o investimento que está vindo para cá”, avalia o advogado colombiano.
ESG
As questões ambientais, sociais e de governança (ESG) também foram tema do segundo dia da conferência, porque estão no centro das discussões jurídicas em todo o mundo. Os critérios ESG são uma maneira cada vez mais popular para os investidores avaliarem as empresas. E muitos fundos, corretoras e consultores agora oferecem produtos que empregam esses critérios.
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Enquanto este conceito está crescendo e se tornando mais importante para muitos investidores, é necessário entender como implementá-lo. Muitas jurisdições e órgãos internacionais estão monitorando as iniciativas desenvolvidas por agentes públicos e privados para que elas sejam melhor implementadas, com o objetivo de buscar alternativas para um sistema unificado de critérios ESG. A questão que importa nesse contexto para o mundo jurídico é: como os advogados podem aconselhar melhor seus clientes para atender e avaliar esses critérios e acompanhá-los no processo?
“O desafio para os advogados é ajudar os clientes a ficarem familiarizados não só com as questões legais num país ou jurisdição específica, mas como estão as tendências nos diferentes lugares, porque nossos clientes estão fazendo negociações e pensando em se engajar nestes assuntos com quem pode participar em todo o mundo. Há diferentes exigências e boas práticas. Quem quer que seja seu cliente, é preciso fazer com que ele entenda as diferentes perspectivas de diferentes parceiros”, explica Werner Federico Ahlers, da firma Sullivan & Cromwell de Nova York.
“O que importa é a empresa estar conectada no seu modelo de negócios e o que faz sentido sob o aspecto ESG. Não adianta buscar uma alternativa que não faz sentido para o meu acionista, que não faz sentido para o meu investidor. Então tem que entender o negócio, o risco dele e a partir disso estabelecer a estratégia ESG que tem de estar alinhada com o setor e as maiores tendências globais, como a redução de emissões”, afirma Renata Amaral, sócia do escritório Trench Rossi Watanabe.
Empreendedorismo feminino
Outro painel discutiu a motivação, as limitações e o impacto da Covid-19 no desenvolvimento da mulher empreendedora na América Latina e quais são os papéis do setor privado para fornecer o ambiente certo para incentivar novos negócios liderados por mulheres em todos os setores. O desafio é como consolidar e aumentar a presença de lideranças femininas no setor corporativo e na indústria jurídica, já que o ambiente é tradicionalmente masculino, branco e heterossexual.
Para Patrícia Cordeiro Nader, do fundo de investimento GK Ventures, em São Paulo, essa é uma realidade em praticamente todas as indústrias. “Diversidade não deveria ser só uma métrica, mas uma fonte de receita e de produtividade. Cada vez tem mais estudos demonstrando que empresas com maior diversidade produzem mais. É essa lente que tentamos trazer para as empresas que investimos, de ajudar a compor e trazer cada vez mais o valor dessa mudança. É preciso manter essa pauta ativa e isso se tornar o dia a dia. Hoje a parte mais difícil é conseguir mensurar e mostrar o valor dessa mudança. Gasto 70% do meu tempo para conseguir monetizar e mostrar o valor que isso tem”.
O segundo dia da conferência também teve o encontro com Flávia Piovesan, advogada brasileira, conhecida por sua obra voltada aos direitos humanos e ao direito internacional. Ela fez parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos entre 2018 e 2021 e foi secretária especial de direitos humanos do governo federal de junho de 2016 a novembro de 2017.
Além dessa conversa, os advogados também debateram em um painel o que está impulsionando o aumento de novos negócios de M&A e como a tecnologia e a inovação continuarão a dominar a paisagem nos próximos anos. Quais serão as principais apostas para os fundos de private equity e venture capital daqui para frente e como essas decisões terão impacto no ecossistema de fusões e aquisições? Advogados e especialistas analisaram a expansão e crescimento do capital de risco, consolidação de startups, fintechs, indústria e a constante competição entre fundos e investidores estratégicos.
Outro painel analisou o ambiente de fusões e aquisições no mundo da tecnologia e a posição das autoridades de concorrência, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) no Brasil. Durante a última década, houve um aumento na atividade de M&A nos mercados digitais. Essas mudanças trazem novos desafios para empresas, especialistas e advogados.
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O último painel do dia analisou os investimentos de private equity e venture capital na América Latina e as dificuldades para realizar negócios na região. Os speakers do evento discutiram como as empresas devem estar preparadas para receber investimentos, incluindo reorganizações societárias, responsabilidade e conformidade com os padrões internacionais.
LexLatin vai publicar uma série de reportagens especiais nos próximos dias sobre os desafios de fusões e aquisições na América Latina. Você pode acompanhar tudo sobre a conferência da IBA na cobertura especial de LexLatin e em nosso podcast, com o resumo do dia.
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