Conflito federativo vai longe com redução de ICMS

Segundo especialistas ouvidos por LexLatin, o impacto na arrecadação dos Estados é relevante/Pixabay
Segundo especialistas ouvidos por LexLatin, o impacto na arrecadação dos Estados é relevante/Pixabay
Guerra fiscal entre estados e União tem novo capítulo com mudança na tributação de bens e serviços essenciais.
Fecha de publicación: 20/07/2022
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Uma discussão jurídica importante é mais um capítulo na briga entre estados e União em relação a tributação de setores considerados essenciais na economia brasileira. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) depois que governadores de 11 estados (Pernambuco, Maranhão, Paraíba, Piauí, Bahia, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Sergipe, Rio Grande do Norte, Alagoas e Ceará) e do Distrito Federal ajuizaram ação questionando as mudanças na cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

Eles contestam a Lei Complementar federal 194/2022, que alterou a legislação do ICMS e do PIS/Cofins nos setores de combustíveis, telecomunicações, energia elétrica e transporte coletivo. Na prática, de acordo com a norma, eles passam a ser considerados bens e serviços essenciais, com alíquota básica limitada entre 17% e 18%.

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A legislação também determinou que não incidirá o ICMS sobre “serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica”, entre os quais se incluem a TUST (Tarifas de Uso do Sistema Elétrico de Transmissão), que incide sobre os consumidores conectados aos sistemas elétricos das concessionárias de transmissão, e TUSD (Tarifa de Uso dos Sistemas Elétricos de Distribuição), que incide sobre os consumidores conectados aos sistemas elétricos das concessionárias de distribuição. 

Foram ainda introduzidas alterações na Lei Complementar nº 192, que dispôs sobre a incidência monofásica do ICMS sobre combustíveis.  A motivação alegada para a edição da nova Lei Complementar é a de combate à elevação de preços e serviços e inflação do país.

No STF, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7195, com pedido de liminar dos 11 estados e DF, tem como argumento central a tese de que a decisão reduz a arrecadação de impostos nas 27 unidades da federação e quebra o chamado pacto federativo, ao intervir - sem discussão e contrapartida - no regime tributário, financeiro, orçamentário e político. Uma das principais justificativas jurídicas dessa discussão tem relação com a Constituição Federal de 1988, que dá autonomia a estados e Distrito Federal de determinar suas alíquotas de ICMS com base na realidade de cada unidade da federação. Nessa linha de argumentação, não caberia à União determinar ou reduzir tributos.   

No ano passado, só o ICMS foi responsável por 86% do valor total dos impostos nos estados (30% só com combustíveis, petróleo, lubrificantes e energia), o que, segundo os governadores, pode impactar nos setores de educação e saúde – e também na receita dos municípios, que recebem 25% do que é arrecadado com o imposto.  O caso, que está nas mãos da ministra Rosa Weber, aguarda julgamento.

LexLatin questionou a constitucionalidade da Lei Complementar 194/2022 e também da ADI 7195 junto ao Supremo com juristas da área.

Para Hugo Funaro, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário e Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, sócio do Dias de Souza Advogados Associados e autor de vários livros sobre o tema, a Lei complementar é constitucional.

“Entendemos que a Lei Complementar nº 194/2022 atuou dentro da esfera que lhe compete de regular limitações ao poder de tributar e estabelecer normas gerais em matéria tributária (CF, art. 146, II e III, “b”), ao qualificar determinados bens e serviços como essenciais. A seletividade do ICMS é uma limitação constitucional ao poder de tributar, considerando que o legislador estadual, ao fixar alíquotas diferenciadas do imposto, está obrigado a  fazê-lo em função da essencialidade dos bens e serviços, conforme, aliás, já decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o referido Tema 745”, afirma.

O tributarista avalia que, por outro lado, é evidente que os estados que fixavam alíquotas maiores para os bens e serviços considerados essenciais pelo legislador federal terão redução de receitas, sendo incerta a efetividade e suficiência do sistema de compensação das perdas com verbas federais, prevista na lei complementar.

“É admissível que a lei complementar indique bens e serviços que devam ser considerados essenciais e não supérfluos, para uniformizar o trato da matéria no território nacional, sendo razoável que assim o faça em relação não só à energia e aos serviços de comunicação, como, também, em relação aos demais produtos e serviços indicados na Lei Complementar nº 194/2022, por serem fundamentais para a economia e utilizados, de forma direta ou indireta, por toda a população”, diz.

De acordo com o advogado, não se trata de fixação ou redução de alíquotas pela União, mas sim de orientar os legisladores estaduais quanto aos produtos e serviços que, por suas características, não podem ter alíquotas superiores à alíquota, de forma a assegurar a racionalidade do sistema tributário. “Há de ser ponderado, todavia, que o STF havia postergado o ajuste das alíquotas da energia elétrica e dos serviços de comunicação para 2024, de sorte que a antecipação de tal prazo, ao menos em relação a tais itens, poderá ser considerada afrontosa à coisa julgada e ao princípio da separação de poderes”, explica.

O também advogado tributarista Pedro Lameirão, sócio do BBL Advogados e mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ defende a forma como foi editada a Lei Complementar 194/2022. “Ela positivou este entendimento do STF e estendeu o alcance a alguns outros itens também considerados essenciais na visão do legislador. Não há, portanto, inconstitucionalidade material na Lei Complementar. Pelo contrário, pode-se dizer que ela harmonizou a legislação à interpretação dada pelo STF ao texto constitucional”, analisa.

No entanto, segundo o especialista, como o impacto na arrecadação dos Estados é relevante e a mudança foi feita de forma abrupta em função dos interesses políticos envolvidos, o país se vê diante de mais uma crise no federalismo. “Os argumentos [dos estados] têm muito mais apelo político do que jurídico.”

João Paulo Cavinatto, sócio da prática Tributária do Lefosse Advogados e especialista em negociações de incentivos fiscais e regimes especiais nos âmbitos federal, estadual e municipal acredita que a ADI 7195 junto ao STF não deve dar ganho de causa aos estados.

“Isso porque, tecnicamente, a Lei complementar 194 não concede isenção. A nova Lei está apenas regulamentando o princípio da seletividade previsto na Constituição Federal. Constituição essa que inclusive atribui à lei complementar a competência para instituir normas gerais em matéria de ICMS.  Além disso, essas disposições da LC 194 estão em linha com a recente decisão do STF, que determinou que, caso adotem a técnica da seletividade do ICMS, os estados não podem estabelecer alíquotas superiores a das operações em geral nas operações com energia elétrica e telecomunicações”, avalia.

Para o advogado, a única diferença no que se refere ao setor elétrico é que a norma tem vigência imediata, enquanto a decisão do STF teve seus efeitos modulados para valer somente a partir de 2024. “A nosso ver, nada na decisão do STF limita ou obstaculiza a atuação do Poder Legislativo, que anda bem ao editar a Lei Complementar 194, inclusive, por uma questão de isonomia entre os contribuintes, já que os efeitos da decisão do STF somente aproveitariam desde já aqueles contribuintes com ação judicial sobre a matéria em curso na data da decisão”, afirma.

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Raphael Gomes, presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Energia (IBDE) e sócio da prática de Energia do Lefosse, acredita que há um desafio adicional para as distribuidoras de energia elétrica, que são usualmente responsáveis tributárias pelo recolhimento do ICMS sobre a energia fornecida aos consumidores. “Elas devem atender às legislações estaduais vigentes e, ao mesmo tempo, precisam observar a legislação no que tange ao usuário de energia, já que são vinculadas a critérios regulatórios de definição tarifária – que pressupõe o repasse de benesses tributárias para o consumidor final”.

O debate é polêmico e vai longe, pois ainda deve ter novos capítulos. Isso porque especialistas veem riscos jurídicos aos contribuintes que optarem pela redução com base na Lei Complementar 194/2022. Caso estados consigam reverter essa decisão do governo federal, haveria a possibilidade, por exemplo, de que esses usuários sejam autuados num futuro próximo. Nesse caso, eles teriam que pagar o valor cheio do imposto, mais juros e multas.  

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