Guerra na Ucrânia: a posição dupla do Brasil sobre o conflito

Brasil foi um dos 141 países a condenar a ofensiva militar da Rússia à Ucrânia/ONU
Brasil foi um dos 141 países a condenar a ofensiva militar da Rússia à Ucrânia/ONU
Enquanto presidente prega “neutralidade”, diplomacia vota a favor da resolução da ONU contra a Rússia.
Fecha de publicación: 02/03/2022

Enquanto Jair Bolsonaro prega a chamada “neutralidade” do Brasil em relação à guerra na Ucrânia, representantes da diplomacia brasileira votaram, nesta quarta-feira (2), a favor da resolução da ONU contra a invasão russa na Ucrânia, condenando a postura de Vladimir Putin. São duas posições contraditórias, uma do presidente e outra do Ministério das Relações Exteriores (MRE), algo que confunde a cabeça de muitas pessoas.

Apesar da posição definida no cenário internacional, diplomatas evitam criticar publicamente o governo russo. E partidários de Bolsonaro temem que as falas do presidente possam trazer algum dano à imagem e negociações comerciais do Brasil nesse cenário de guerra entre as principais potências mundiais. 

Tudo começou quando Bolsonaro foi visitar Vladimir Putin em Moscou, uma semana antes do conflito. Na conversa de duas horas entre os dois, Bolsonaro se declarou solidário à Rússia, algo que gerou um ruído para a diplomacia brasileira, especialmente na relação com os Estados Unidos.


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Assim que explodiu a guerra, num primeiro momento, houve a preocupação da diplomacia em não condenar a invasão da Ucrânia pelos russos. O tom era de conciliação. Mas na última sexta-feira (25) veio o primeiro posicionamento Itamaraty, quando o Brasil expressou claramente sua posição contra Putin dentro do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, a ONU.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro reafirmou seu posicionamento. “A nossa posição com o ministro Carlos França é de equilíbrio. E nós não podemos interferir. Nós queremos a paz, mas não podemos trazer consequências para cá", defendeu o presidente em entrevista no Guarujá, no último domingo (27). 

Mesmo assim, o Brasil foi um dos 141 países a condenar a ofensiva militar da Rússia à Ucrânia nesta semana.

A resolução condena a invasão na Ucrânia e expressa preocupação com ataques a alvos civis como residências, escolas e hospitais. Segundo a Agência da ONU para Refugiados, a Acnur, mais de 1 milhão de ucranianos já cruzaram as fronteiras com países vizinhos para fugir dos ataques russos.

O embaixador do Brasil na ONU, Ronaldo Costa Filho, explicou o voto do país afirmando que as soluções duradouras só podem ser alcançadas à mesa de negociações com compromisso e diálogo.

Segundo ele, o Brasil continua pedindo às duas partes para reduzir a escalada de violência e renovar os esforços para gerar um acordo diplomático entre Ucrânia e Rússia, algo que leve à segurança e estabilidade da região.

A opinião dos especialistas

Essa é uma saia justa que tem feito o Itamaraty “pisar em ovos” desde que eclodiu o conflito. Para entender um pouco melhor as contradições do discurso do MRE e de Bolsonaro, LexLatin buscou a opinião de especialistas em direito e comércio internacional.

Para Márcio Coimbra, presidente da Fundação da Liberdade Econômica (FLE) e professor da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, esse posicionamento dúbio, que tem causado confusão para entender o que pensa o governo brasileiro, na verdade é um jogo de cena. Por um lado, o presidente olha para a sua base eleitoral mais fiel tentando criar factoides. De outro, tem a posição jurídica do Brasil na esfera e nos organismos internacionais.

“Ao mesmo tempo em que o presidente não entra em conflito com o Itamaraty,  ele tem outra face, voltada para a política eleitoral aqui no Brasil. Bolsonaro tem subido nas pesquisas, precisa incendiar a base e fica entrando nessas polêmicas de que é a favor da Rússia. Isso é para agradar o eleitorado dele mais à direita. Mas, ao mesmo tempo nos organismos internacionais, o país tem se posicionado de forma direta e não antagônica. Isso significa que há um acerto de bastidores, Bolsonaro está com um pé em cada canoa”, afirma Coimbra.

Na avaliação do professor, o Brasil hoje faz uma política externa perigosa no longo prazo. “Porque mostra que o país é pouco confiável e não tem linhas definidas de atuação. No curto prazo, essa postura ajuda Bolsonaro, mas no longo prazo isso vai deteriorar nossa imagem lá fora”, diz.

Elizabeth Meirelles, professora de Direito Internacional da USP, acredita que a postura do presidente não seria intencional. “Ele não tem nível de informação suficiente para poder analisar essa questão dentro de uma visão de relações internacionais, de política internacional. A experiência dele não dá base para ele fazer esse tipo de análise”, afirma.

O advogado Lenio Streck, professor da Unisinos RS e Unesa RJ e especialista em filosofia do direito e à hermenêutica jurídica, defende que não há neutralidade possível em uma disputa como essa. “As relações internacionais, em uma guerra, exigem um corpo só: o político-econômico de um país soberano. Parece que o Brasil acha que dá para levar no bico a comunidade internacional. O país vai sofrer ali adiante. Principalmente se nem a neutralidade é 'neutra', se permite uma blague. É preciso assumir que não dá para servir dois senhores.”

A também professora de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP, Maristela Basso, explica que a posição oficial do Brasil é aquela expressa pelo MRE na ONU, na Organização dos Estados Americanos (OEA), no G-7 (o grupo das sete maiores economias do mundo) e nos Brics (grupo de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

“O Itamaraty sempre caminhou no respeito aos princípios do direito internacional, soberania do país estrangeiro e da solução das controvérsias pelos métodos pacíficos para que seja encontrada uma solução negociada”, analisa.


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A especialista avalia que o presidente, em seus pronunciamentos e entrevistas, confunde a posição pessoal dele com a do Brasil. “Ele sempre se apresenta de forma, digamos, desajeitada ou diz alguma coisa que possa revelar ou dar a entender que ele está do lado da Rússia e não do lado do Direito Internacional da busca da paz e o respeito à soberania. É uma posição equivocada, mas a que pesa é aquela expressa pelo MRE nos foros adequados e competentes”.

Para a advogada, o mundo já aprendeu a não dar crédito ao que diz o presidente brasileiro. “Ele não tem nenhuma respeitabilidade, é mais um capítulo de uma ópera bufa. O que pesa é a declaração do MRE, que está sintonizado para manter sua tradição de se manifestar sempre no sentido da paz, do direito internacional, não tomando partido desse ou daquele, conclamando para que solução pacífica seja encontrada e colocando-se à disposição para buscar a paz e evitar um conflito maior. Essa é a tradição brasileira e o ministro [Carlos] França não está nos envergonhando ou voltando atrás”, diz.

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