A guerra na Ucrânia à luz das relações internacionais

A Ucrânia é um território estratégico pela sua proximidade com a Europa/Canva
A Ucrânia é um território estratégico pela sua proximidade com a Europa/Canva
Entenda a motivação do conflito e quem são os atores envolvidos.
Fecha de publicación: 24/02/2022

Nessa semana, o mundo vivenciou o início de mais uma guerra. O presidente russo Vladimir Putin declarou que enviaria tropas a Donetsk e Lugansk, regiões no leste da Ucrânia em que a maioria da população é a favor da Rússia, depois de reconhecê-las como estados independentes.

A invasão à Ucrânia se deu por terra, ar e mar. Nas redes sociais surgiram diversos vídeos em que é possível ver mísseis passando pelo céu ucraniano. Ainda não há um número oficial de mortos e feridos, mas as autoridades ucranianas informaram que há pelo menos 40 soldados ucranianos mortos e 169 pessoas feridas.

Enquanto isso, o prefeito da capital Kiev anunciou toque de recolher. Mas isso não impediu que as rodovias da capital ficassem cheias com moradores tentando deixar o país. Alguns países da Europa central já se preparam para receber ucranianos que fogem do conflito. 


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Mas, afinal, o que causou esse conflito? LexLatin conversou com especialistas em relações internacionais.

Para começar a entender o que está acontecendo na Ucrânia, é necessário voltar no tempo, para a época da União Soviética. Durante a existência do país soviético, a Ucrânia foi parte importante, pelo seu tamanho territorial e populacional. A partir de 1991, quando a União Soviética começa a se desintegrar, a Ucrânia consegue independência e passa a se alinhar mais com os países ocidentais.

É importante ressaltar que o território ucraniano está localizado de maneira estratégica. Além de ter um espaço agrícola muito fértil, ele está posicionado mais para o ocidente, portanto, mais próximo da Europa. Assim, o território é considerado fundamental economicamente e é uma região de passagem. Ali passam grandes gasodutos e parte da logística e transporte dos produtos russos, sobretudo, da área de energia. É a ligação entre a Rússia e os países europeus.

Além disso, a Ucrânia possui uma diversidade étnica e identitária. Uma parcela dos cidadãos ucranianos se reconhecem como parte da Ucrânia, um território de fato independente, e se orgulham disso. Outras parcelas da sociedade se identificam com a Rússia. Existe uma proximidade étnica identitária russa em muitos dos territórios mais colados à fronteira da Rússia. Esse tipo de situação causa, historicamente, muitos conflitos, como lembra Rodrigo Amaral, professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Acho que o mais notório que a gente pode lembrar foi a anexação da Crimeia, que não é reconhecida internacionalmente, mas é um território anexado à Rússia, desde 2014. Foi um território que internamente sofreu com o conflito civil”, diz.

O principal gatilho do conflito é o debate sobre a incorporação da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que é uma organização militar de defesa coletiva que visa a proteção dos países do Norte ocidental. O problema é que a Ucrânia seria o primeiro Estado fronteiriço da Rússia a entrar na Otan.

Evidentemente, a Rússia é um país oposto historicamente à existência da organização. Os soviéticos criaram seu próprio sistema de Estados de segurança coletiva, justamente para fazer frente à Otan, que foi criada no cenário imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Então, a entrada da Ucrânia é vista como algo extremamente negativo pelos russos.

Quando os Estados Unidos surgiu com a possibilidade da entrada ucraniana na organização, a Rússia bateu o pé. Sabendo que dentro da Ucrânia existem movimentos da sociedade que são contra e que não se identificam com a Otan, a Rússia se posicionou dizendo que iria proteger essa parcela. E aí a “justificativa” dessa invasão vem exatamente quando se tem a aclamação da independência de Donetsk e Lugansk, concomitante com o movimento russo de proteção dessas comunidades. 

“A partir desse discurso humanitário, de proteção dos povos, de autodeterminação - que inclusive é um discurso extremamente liberal e que foi inventado pelos Estados Unidos no início do século 20 - os russos estão incorporando essa lógica e isso é muito sagaz por parte deles”, avalia Rodrigo. 

Agora, a Otan não tem obrigação de apoiar a Ucrânia no conflito, em função do Tratado de Segurança Coletiva, já que o país ainda não é membro formal da organização, destaca Laerte Apolinário Júnior, também professor de relações internacionais na PUC-SP.

“Eu acho bastante improvável que a Otan, ou o próprio Estados Unidos, intervenha diretamente enviando tropas para combaterem as forças russas. Inclusive, o Biden já descartou toda e qualquer possibilidade concreta de que os Estados Unidos participe dessa disputa. O que pode - e já está acontecendo - é os países da Otan apoiarem a Ucrânia de forma indireta, por meio de fornecimento de armamentos ou apoio logístico. Eu diria que para além da aplicação de sanções econômicas e de apoio indireto, eu acho que seria improvável uma intervenção direta da organização do conflito, até pelas possibilidades da escalada do conflito para uma guerra de grandes proporções”, afirma Laerte.

Outro ator que pode ser importante nesse contexto é a China. A China e sua diplomacia tem buscado adotar uma postura de moderação na disputa. Tanto que a China rejeitou chamar as atividades da Rússia de invasão, diferente de outros países, e aí da fez um apelo para que todos os lados exerçam a contenção. 

De acordo com o professor, os motivos disso seriam tanto políticos quanto econômicos. Tanto pelo fato de que a China vê na Rússia um parceiro potencial nesse processo de ascensão e de rejeição a alguns valores e princípios emanados pelo Ocidente, como pelo fato de que a China pode acabar obtendo dividendos com essa disputa. 

Vale destacar que as principais ferramentas que os países ocidentais possuem nesse momento para pressionar a Rússia, são sanções econômicas. Nesse sentido, a Rússia então olha para a China como uma alternativa óbvia para atenuar o impacto das sanções ocidentais. Aliás, a China já é o principal parceiro comercial da Rússia. 

“A China tem buscado desenvolver instituições de modo a rivalizar com algumas instituições ocidentais, na infraestrutura do sistema financeiro, pensando no tema de transações financeiras. A principal ameaça feita à Rússia em relação à escala do conflito tem sido a ameaça de cortar as relações financeiras da Rússia com o mundo ocidental. Nesse sentido, a China se torna a alternativa óbvia da Rússia, até pelo fato de que a China tem desenvolvido um sistema alternativo com a mesma finalidade”, explica Laerte.

Ao mesmo tempo, a China é uma parceira econômica importante para a Ucrânia. A China se tornou o maior parceiro comercial da Ucrânia, inclusive passando a Rússia. O país vê também a Ucrânia como uma região estratégica de acesso à Europa. 

“A China faz planejamentos no âmbito da nova rota da seda, no projeto One Belt One Road, para integrar a Ucrânia de modo a financiar a infraestrutura ligando a região da Ásia com a Europa. Então, esse conflito representa um desafio para a China, no momento em que o país está ascendendo no sistema internacional e assumindo mais responsabilidade como uma potência global”, afirma o professor.


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Na madrugada em que se iniciou o conflito, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS/ONU) convocou uma reunião de emergência para discutir a questão.

Para Rodrigo Amaral, a ONU funciona como “um espaço teatral no qual os Estados se manifestam diplomaticamente”. 

“A ONU se torna um teatro discursivo. Ali nunca vai ficar explícito as reais intenções dos Estados. A vontade de integração da Ucrânia à Otan não vai ser mencionada e não vão ser mencionadas as intenções geopolíticas russas. Vai ficar dentro do âmbito discursivo que é um âmbito de quem tem legitimidade para agir da maneira como está agindo”, argumenta.

Portanto, a ONU tem pouca influência na resolução dessas disputas, principalmente em um conflito como esse, em que a principal parte interessada, a Rússia, é membro do Conselho de Segurança.

“Ou seja, qualquer resolução direcionada contra a Rússia no Conselho, vai ser vetada pela própria Rússia. Então, eu acho que para além do envio de ajuda humanitária e de funcionar ali como espaço de negociação entre as partes envolvidas, eu diria que há pouco o que a ONU e o Conselho de Segurança, de forma específica, possam fazer para resolver esse conflito”, avalia Laerte. 

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