Homeschooling: a nova fronteira do debate ideológico

O Projeto de Lei 3262/2019 busca excluir do rol do crime de abandono intelectual a prática do homeschooling/Pixabay 
O Projeto de Lei 3262/2019 busca excluir do rol do crime de abandono intelectual a prática do homeschooling/Pixabay 
Proposta de ensino domiciliar vem ganhando força no Legislativo – mesmo que o STF já tenha decidido contra. 
Fecha de publicación: 01/06/2021

Uma das pedras fundamentais dos anos Jair Bolsonaro como presidente da República é a busca por um conceito próprio de liberdade individual. Os discursos presidenciais – e eles já se avolumam, ao público e privadamente, desde 2019 – abordam esta questão em uma série de temas: a liberdade para se armar é a mais cara, mas o pensamento se estende a outros setores: liberdade para dirigir como se pensa (daí mudanças no Código de Trânsito Brasileiro), liberdade para explorar recursos naturais (daí a atual política ambiental) e liberdade para ir e vir mesmo durante a pandemia (daí as ações de Bolsonaro contra o lockdown).


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Enquanto algumas destas questões são paradas pela Justiça, como a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em suspender efeitos de um decreto de armas do começo do ano, outra frente se abre no legislativo: a liberdade de educar as crianças como quiser. Não à toa, a palavra homeschooling voltou ao debate na Câmara dos Deputados.

Na última segunda-feira (31), a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara tentou aprovar o Projeto de Lei 3262/2019, apresentado por deputados da base do presidente Jair Bolsonaro e que busca excluir do rol do crime de abandono intelectual a prática do homeschooling. A proposta, que tenta alterar o artigo 246 do Código Penal, está na fila de votação da comissão, que é comandada pela deputada Bia Kicis (PSL-DF), uma das parlamentares mais leais ao presidente da República.

No Rio Grande do Sul, já houve maior sucesso: em 2020, a Assembleia Legislativa local discutiu e aprovou, também em sua CCJ, um projeto de lei que regulamenta o homeschooling. O texto, que contou com parecer favorável na comissão, seria votado nesta terça-feira (1º) na Assembleia.

O autor da proposta foi o deputado estadual Fábio Ostermann (NOVO), que já disse em debates anteriores sobre a Lei que "o mais importante é que é uma questão de abrir outra opção para os pais que se encontrem aptos". A justificativa do texto que Ostermann apresentou em 2019 explica que a origem da discussão vem de uma decisão do STF em um julgamento de 2018 – na ocasião, ao julgar o tema 822, a Corte considerou inconstitucional o homeschooling, mas indicou que isso ocorria apenas por falta de previsão legal.

"O STF delineou que a prática da educação domiciliar não estaria vedada, exigindo que para sua regular implementação o Poder Legislativo deveria garantir as ferramentas necessárias à fiscalização do ensino domiciliar ministrado", disse Ostermann. "Tais garantias, pois, deveriam compreender o respeito a padrões mínimos de qualidade, de forma a assegurar o direito fundamental à educação e ao pleno desenvolvimento das crianças, adolescentes e jovens que porventura sejam submetidos a esse regime de ensino." 

O tema impacta, segundo dados da Aned (Associação Nacional de Ensino Domiciliar), 15 mil estudantes de quatro a 17 anos, em 7.500 famílias – um crescimento de 2.000% entre 2011 e 2018. O tema também estabelece um novo equilíbrio de forças sobre o artigo 205 da Constituição, que fixa que "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade". Quem, então, estaria com a razão?

A especialista em direito constitucional Vera Chemim entende ser necessária a regulamentação do homeschooling. "Enquanto esse projeto de lei não for aprovado pelo Poder Legislativo persiste a sensação de insegurança jurídica dos pais, apesar de não se enquadrar a conduta em crime de abandono intelectual previsto no artigo 246 do Código Penal", ressaltou.  

Para a constitucionalista, o fato de as famílias não serem enquadradas naquele crime constitui um mero paliativo que não soluciona de forma definitiva o problema do ensino domiciliar. "Seria necessário pressionar o Poder Legislativo para agilizar essa demanda da sociedade e definir juridicamente os contornos dessa modalidade de ensino, uma vez que essa opção familiar remete a um direito fundamental de liberdade, quanto à educação."

O sócio-fundador do Pisco & Rodrigues Advogados, Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues, não acredita que, apesar da explosão do homeschooling, a jurisprudência tenha sido alterada. "[Quem alterou foi] a própria sociedade, que, talvez pela inépcia dos ensinos público e privado, passou a acreditar na possibilidade de prestar o serviço de educação pela modalidade de homeschooling", explicou. 

"Se formos olhar o texto da Constituição, entendo que assiste razão ao entendimento firmado pelo Supremo, pois a educação se trata de um dever não só do Estado, mas da família", continuou o advogado. "Esse dever do Estado se dá pela oferta da educação básica, da universalização do ensino médio, dentre outras obrigações. Mas não há nada na Constituição que limite esse dever que também é imposto à família". Como a educação é regulada por legislação concorrente, à União, conclui, cabe estabelecer as normas gerais.


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Já o especialista em Direito Internacional e Constitucional do Peixoto & Cury Advogados, Saulo Stafanone Alle, não considera que a concepção constitucional de educação esteja sob ataque. "As mutações constitucionais são comuns, naturais. No entanto, as premissas objetivas do texto são muito claras: educação é um dever compartilhado, em colaboração, e visando promover o exercício da cidadania, entre outros", disse. "Não podemos pensar que os juristas são os sábios que devem definir todas as escolhas da sociedade, em todos os campos."

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