Os impactos da guerra na Ucrânia para o mercado jurídico brasileiro

Firmas  e especialistas já preveem uma crise econômica maior que a da pandemia de Covid-19/Canva
Firmas  e especialistas já preveem uma crise econômica maior que a da pandemia de Covid-19/Canva
Retaliações dos dois lados atingem toda a cadeia produtiva – inclusive os clientes dos escritórios de advocacia.
Fecha de publicación: 14/03/2022

Não estava nos planos de ninguém. Uma guerra no momento em que a crise do coronavírus dá sinais de diminuição era tudo que a indústria jurídica não queria passar. Ainda mais nesse momento, que indicava uma retomada, com a volta dos investimentos das firmas e principalmente dos clientes. Esse primeiro mês de conflito entre Rússia e Ucrânia soou como uma ducha de água fria para as pretensões, por exemplo, das bancas que pretendiam investir em tecnologia. Ou para quem já previa contratações de novos profissionais nos diversos setores que poderiam deslanchar em 2022 – como infraestrutura, litígios, proteção de dados, contratos e compliance.

Ainda sem saber o que vai acontecer, só resta a managing partners e diretores de grandes, médios e pequenos escritórios esperar mais um pouco. Outros já começaram a tomar decisões baseadas nesse cenário. A primeira medida adotada é rever o orçamento de 2022. Nesse momento, é preciso tirar o pé do acelerador e buscar o comedimento, cortando despesas que na atual conjuntura parecem ter ficado para segundo ou terceiro plano, já que os clientes também estão reduzindo as previsões de crescimento.


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“Acabamos de rever o nosso orçamento para o ano. Vemos um cenário mais desafiador e, com isso, buscamos ter mais eficiência e controle de custos e investimentos. Não estamos mais naquele cenário: - puxa, está tudo bombando, vamos pisar no acelerador. O ano traz uma variável de risco maior com a guerra. Então estamos na política de intolerância ao desperdício, conscientização de que a despesa tem que ser controlada, que não tem como olhar só: - ah, o valor é baixo. Tem que saber se efetivamente faz sentido, se é necessário o gasto e se não tem alternativa. Cada vez mais, e num contexto como esse, ficamos ainda mais inclinados a ser mais rígidos no controle de gastos”, afirma Fernando Meira, sócio gestor do Pinheiro Neto Advogados.

E aí, nesse cenário de incertezas, alguns setores vão sofrer mais que outros.  “Você pode adiar investimentos de tecnologia, ser mais controlado em gastos com patrocínio de eventos, de viagens de marketing e de seminários. A parte de marketing institucional você tenta segurar mais. Estamos batendo o pé para que tudo seja muito criterioso e muito racional”, diz Meira.

A má notícia é que, por enquanto, muitos escritórios vão segurar as contratações. “Novas contratações passam a ser em regime extraordinário e pontual. As contratações ordinárias de estagiários e promoções de carreira estão mantidas. Tinha vários pedidos de contratações laterais. Será que estamos tão otimistas assim a ponto de precisar dessas pessoas? Como é que está a ocupação? O controle é semanal. Está mantendo estável? Está caindo? Está aumentando? Até aqui está estável. O nosso negócio é produção, você vê o número de horas do escritório inteiro”, avalia o sócio gestor.

Num primeiro bate papo com alguns CEOs, managing partners e especialistas, a ordem é não entrar em pânico, acreditar que o conflito não vai durar muito tempo, mas tomar decisões mais cautelosas para não pisar em falso, em areia movediça.

“Foi uma ducha de água fria, um anticlímax essa guerra. Estava todo mundo preparado para voltar a todo vapor. Esses dois primeiros meses do ano foram até mais movimentados do que normalmente são janeiro e fevereiro por causa dessa situação. Ainda é muito cedo para uma perspectiva de longo prazo para saber o que vai acontecer, mas fica uma situação insegura e talvez as coisas sejam postergadas um pouco para aguardar até onde vai essa tal dessa guerra”, analisa Cesar Amendolara, sócio de investimentos estrangeiros no Brasil e brasileiros no exterior do escritório Velloza Advogados. “Todo mundo vai ficar mais na retranca para saber o que vai acontecer. É um ano difícil. Estava todo mundo achando que ia ser o ano da libertação, mas não vai ser pelo jeito”, diz.

A professora de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP, Maristela Basso, avalia que a guerra em curso na Ucrânia é muito mais grave que a da Covid. “Como é que você vai lutar contra o fenômeno econômico, contra o que chamamos de impacto da movimentação do capital para alguns lugares do mundo mais seguro?”


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Para a especialista em comércio internacional, enquanto durar o conflito uma boa parte do dinheiro vai ficar nos bancos e não vai sair para gerar empregos. “Teremos um empobrecimento geral, porque as cadeias globais de suprimentos estão sendo afetadas com as sanções econômicas contra a Rússia e com as contra sanções deles. Tivemos por aqui produtos como petróleo, carvão, gás, milho, trigo e metais atingidos. Com isso, você afeta todas as demais matérias primas. Elas sofrem o aumento proporcional ao aumento que esses produtos principais tiveram”, afirma.

Uma situação que, na avaliação da especialista, também atinge a totalidade dos países da América Latina. “São países que usam a sua malha rodoviária, que dependem muito mais das estradas do que de outros mecanismos como aviões, trens, navios e embarcações. E isso afeta a sobrevivência das pessoas”.

Por aqui, o fato de os brasileiros manterem poucos negócios com a Rússia afetou menos os negócios num primeiro momento, mas aí veio a questão dos fertilizantes e do petróleo. O primeiro ameaça a produção agrícola brasileira e as safras a partir de outubro. O segundo é sinônimo de mais inflação, ainda mais com o aumento gigante dos preços dos combustíveis.

“Tivemos algumas consultas de clientes que importam produtos da Rússia sobre possíveis implicações da manutenção de negócios com empresas daquele país. No restante, além de lamentarmos profundamente a invasão e a atrocidade da guerra, já temos repercussões na economia que afetam todo o mercado, particularmente aumento da inflação”, explica Fernando Serec, CEO do escritório TozziniFreire.

Para Roberto Dumas, economista especializado em mercados emergentes,  independente de as empresas não terem uma relação direta com os insumos que estão sendo afetados até agora (fertilizantes, grãos como soja milho e trigo, petróleo e gás natural, carne de frango, carne bovina), a inflação desencadeada pela guerra, afetando esses preços, levará a autoridade monetária a praticar uma política mais contracionista, com taxas de juros maiores, que certamente afetarão o crescimento econômico do país e até mesmo empresas que não têm qualquer relacionamento com a Rússia.

Assim, os escritórios de advocacia vão ter mais trabalho para tentar desenhar estruturas jurídicas offshore que possibilitem as transações entre os países. “As empresas afetadas diretamente precisarão demais de escritórios de advocacia, até porque muitas poderão apresentar problemas com os bancos ou ate enfrentar restrições”, diz.

Segundo os analistas, a guerra na Ucrânia e as sanções aplicadas pelo Ocidente à Rússia representam, sob o ponto de vista jurídico, caso fortuito ou de força maior, capazes de justificar a revisão ou mesmo o rompimento de diversos contratos locais ou internacionais. “O impacto direto em acordos lastreados no preço do rublo ou no barril de petróleo são um exemplo disso. A liberação dos jogadores estrangeiros de futebol, que atuam em clubes dos países envolvidos no conflito de seus contratos, feita pela Fifa, idem. É importante pontuar, todavia, que as partes envolvidas devem sempre agir de boa-fé e com o intuito de dar continuidade racional ao ajuste, sem se aproveitar da situação para simplesmente abandonar o que se combinou”, explica João Pedro Brígido, sócio de Resolução de Disputas no BBL Advogados.


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“Problemas no fornecimento podem gerar conflitos, descumprimentos contratuais, que podem gerar discussões em arbitragem, nos fóruns brasileiros a dependem de como estão as cláusulas de resolução de controvérsias nos contratos”, diz José Nantala Badue Freire,  especialista em direito internacional do Peixoto & Cury Advogados.

Para os especialistas, todos esses fatores mexem com o lado psicológico, além da incerteza e do risco.

“Não achamos que agora é hora de tomar nenhuma decisão mais estratégica, de fôlego. A gente não está pessimista, mas também ficamos longe de estarmos otimistas. Está todo mundo preocupado, acompanhando um cenário que já era desafiador para o Brasil por conta de eleições e pressão inflacionária, desemprego alto, crescimento baixo. Quando você traz esse componente, que vai importar mais pressão, acaba impactando negócios. E aí a parte transacional do escritório que fica mais exposta. A turma de contencioso, tributário, trabalhista, regulatório, que é mais do dia a dia, não é tão impactado ou é muito pouco impactado. Mas nós de transações, de M&A, private equity, mercado de capitais sentimos, seria ingênuo ou irresponsável achar que o contexto não atrapalha”, afirma Fernando Meira.

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