Um dia, em um passado que parece distante, a Operação Lava Jato monopolizou o debate nacional — de uma maneira tão aguda que, pela primeira vez na história recente do país, brasileiros foram a uma eleição mais preocupados com a moral do que com a onipresente pauta econômica. Seus protagonistas ou foram excluídos do debate político ou alçados a planos mais altos.
Isso foi há quatro anos. Hoje, em um enredo até difícil de explicar, tudo parece invertido: às vésperas das eleições de 2022, o principal preso pela operação está não apenas solto, mas livre - e a operação, antes tratada como a responsável por implantar a pauta anticorrupção no país, hoje passa por uma revisão profunda dos seus efeitos e do seu próprio conceito.
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Após dois anos de revisões e reveses pelas cortes superiores em casos considerados emblemáticos (o de Lula no Supremo Tribunal Federal é um deles), os participantes da Lava Jato se veem agora em um novo ato: os delatores que dão sustentação à maior parte das acusações da operação agora querem rever seus acordos, por considerar que, sob pressão popular e do próprio Ministério Público, terminaram por fazer um mau negócio.
A senha para esta estratégia teria sido um julgamento recente da 2ª turma da Suprema Corte, envolvendo o dono do grupo Petrópolis, Walter Faria. Acusado de lavar dinheiro para irrigar o esquema de corrupção de partidos dentro da Petrobras, o empresário teve sua ação trancada (encerrar, por fim a uma ação penal sem julgar o mérito) após voto unânime da turma em relação ao parecer do ministro Gilmar Mendes.
Em seus argumentos, Gilmar fez as já reconhecidas críticas ao então juiz federal Sergio Moro, responsável pelo caso, e Deltan Dallagnol, o procurador do Ministério Público que comandou a força-tarefa. Mensagens hackeadas em meados de 2019 comprovaram que havia uma coordenação entre ambos, o que tornaria o processo nulo.
Mas outra questão importante é que a medida pode motivar pedidos ainda mais complexos, como a restituição dos valores devolvidos pelos delatores. Além de enfraquecer as denúncias que motivaram a Lava Jato, poderia levar o dinheiro de volta aos delatores.
A questão vai além quando se lembra que, depois das delações cobrarem os bens arrecadados ilicitamente, a Receita Federal autuou (e quase sempre aplicou) pesadas multas contra estes contribuintes — e até elas ficariam em risco a partir de agora.
A sócia da área penal do Machado Meyer, Juliana Sá de Miranda, lembra que outras operações grandes realizadas pela Polícia Federal já haviam sido completamente anuladas por conta de erros processuais — o caso mais clássico é o da Castelo de Areia, antecessora da Lava Jato em 2009.
Por isso, dado o escopo sem precedente da Operação Lava Jato, havia a possibilidade de que algum erro ou exagero pudesse jogar o esforço abaixo. Ela, no entanto, não enxerga a operação como “sepultada”, mas sim revista em parte. Na semana passada, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) manteve a condenação contra o ex-homem forte do PT, José Dirceu, pelo crime de tráfico de influência.
Esta revisão é positiva, na visão da advogada. “Se não há provas, não se pode condenar alguém com base em algo que alguém falou”, argumenta. “Haver condenação sem provas, no nosso sistema jurídico, não é aceitável, seja para corrupção, seja para qualquer crime.”
Isso leva à questão dos delatores. Eles poderiam ter seus depoimentos anulados a esta altura do campeonato? Para Juliana, não — mas não há tese que comporte todos os acordos. Há que ser no “caso a caso”, ela pontua.
“Acordos que contenham alguma fragilidade, com incompetência do judiciário ou do Ministério Público, têm grandes chances de serem anulados”, pondera a advogada, lembrando que essa é uma questão preliminar e não de mérito. “Não por esse timing, mas por ele estar eivado de vícios desde sua fase inicial. Um acordo feito com base legal, no termo certo pela autoridade competente, é mais difícil de ser anulado que outro com vícios de ilegalidade.”
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O advogado e professor aposentado de Direito Processual Penal na UFPR (Universidade Federal do Paraná), Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, também atuou na operação desde seu início e aponta que o modus operandi mais trouxe malefícios que benefícios. “Desde o início estamos brigando com os vícios que a operação tinha”, se recorda o advogado, que definiu a operação como “lawfare puro”, ou o uso das leis como uma arma política.
Para ele, é natural que as cortes superiores decidam se as delações precisarão passar por revisão. “Eles terão de discutir isso porque, naquele instante e diante daquelas circunstâncias, quem fez delação foi levado a fazer delação”, argumenta Jacinto. “E foram situações particularmente complicadas, de prender familiares por exemplo. Não houve ilegalidade, todas foram presas com base na lei, mas não sei se elas diriam a mesmas coisas”.
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