Lei Maria da Penha poderá ser aplicada a mulheres trans

O Brasil responde, sozinho, por 38,2% dos homicídios contra pessoas trans no mundo/Flickr/Marcha do orgulho trans/Mídia Ninja
O Brasil responde, sozinho, por 38,2% dos homicídios contra pessoas trans no mundo/Flickr/Marcha do orgulho trans/Mídia Ninja
Decisão do STJ ajuda a enfrentar violência de gênero e poderá diminuir o número de mortes contra essa população país.
Fecha de publicación: 07/04/2022

A decisão é histórica para a comunidade LGBTQIA+ brasileira. Nesta semana a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que, a partir de agora, a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais.

A Lei Maria da Penha representou um importante marco jurídico na defesa dos direitos das mulheres brasileiras, por tratar de forma integral o problema da violência doméstica. A norma criou instrumentos de proteção e acolhimento emergencial à mulher em situação de violência, isolando-a do agressor, e ofereceu mecanismos para garantir a assistência social e psicológica à vítima e preservar seus direitos patrimoniais e familiares. Além disso, sugeriu aperfeiçoamento e efetividade do atendimento jurisdicional e previu instâncias para o cuidado do agressor.


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Com a confirmação da decisão, tudo isso passa a ser usado a favor das mulheres trans. O avanço, segundo os especialistas, é enorme e importante para salvar vidas. O Brasil responde, sozinho, por 38,2% dos homicídios contra pessoas trans no mundo. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais em 2021 foram 140 assassinatos. O país está no topo da lista como o que mais mata essa população pelo 13º ano seguido.

Segundo dados do IPEC (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), em pesquisa publicada em fevereiro de 2021, pode-se contabilizar que a cada 1 minuto 25 mulheres brasileiras sofrem violência. Esse dado significa que 15% das brasileiras acima de 16 anos tiveram experiências de violência física, psicológica ou sexual praticadas por homens de dentro ou próximos à família, o que equivale a 13,4 milhões de brasileiras.

Na mesma decisão dessa semana que inclui as mulheres trans, o STJ determinou a aplicação das medidas protetivas requeridas por uma transexual, nos termos do artigo 22 da Lei 11.340/2006, após ela sofrer agressões do seu pai na casa da família. O caso foi levado até o Tribunal pelo Ministério Público de São Paulo, estado onde o caso aconteceu.

"Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias", disse o relator do caso no STJ, o ministro Rogerio Schietti Cruz.

A decisão em primeira instância e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negaram as medidas protetivas, entendendo que os casos aplicáveis da Maria da Penha seriam limitados à condição de mulher biológica. Ao STJ, o Ministério Público argumentou que não se trata de fazer analogia, mas de aplicar simplesmente o texto da lei, já que o artigo 5º fala em violência "baseada no gênero", e não no sexo biológico.

"Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres", enquanto sexo se refere às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, de modo que, para ele, o conceito de sexo "não define a identidade de gênero", avaliou Schietti Cruz durante o julgamento.

Segundo o IPEA, a implementação da lei, há 15 anos, afetou o comportamento de agressores e vítimas por três canais: aumento do custo da pena para o agressor; aumento do empoderamento e das condições de segurança para que a mulher pudesse denunciar; e aperfeiçoamento dos mecanismos jurisdicionais, possibilitando ao sistema de justiça criminal que atendesse de forma mais efetiva os casos envolvendo violência doméstica.

Para as especialistas consultadas por LexLatin, o conceito de mulher trazido pela Lei Maria da Penha suplanta o perfil biológico binário (sexo feminino/sexo masculino) e deve atender de forma ampla o conceito de mulher.

“É necessário que a identidade de gênero seja definida como a experiência pessoal de gênero, o que pode ou não corresponder ao sexo atribuído de forma biológica. Desse modo, imprescindível a compatibilidade ao gênero com o qual a vítima se identifica psicologicamente, fisicamente e/ou socialmente”, avalia a advogada Cecília Mello, sócia fundadora do escritório que leva seu nome.

Para Mello, a jurisprudência majoritária e diversos autores já apontavam o critério psicológico (como a pessoa se identifica) como o mais adequado. “O posicionamento do STJ vem consolidar a posição de que eventual ausência de norma expressa não pode obstar o reconhecimento de garantias constitucionalmente asseguradas”, afirma.

Advogadas trans

A decisão foi comemorada pela advogada Márcia Rocha, que faz parte do Comitê de Diversidade da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Ela conseguiu algo que abriu um caminho importante para outras pessoas trans na carreira legal: foi a primeira mulher trans a ter o direito de ser reconhecida pelo nome social na entidade em 2017.  O pedido foi feito em 2014 e demorou três anos para que fosse reconhecido nas instâncias superiores. Ela conta que as dúvidas na época eram sobre a validade jurídica da mudança e como isso seria feito na carteira da OAB. Depois desse último obstáculo, a aprovação aconteceu, por unanimidade, no Conselho Federal da entidade. Logo depois mais de 30 pessoas trans fizeram o pedido.

O caso dela também influenciou outra decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu, em março de 2018, que pessoas trans que desejam alterar o nome e gênero de registro em sua documentação de nascimento pelo nome social podem procurar qualquer cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais do Brasil sem a presença de autorização judicial, laudo médico ou cirurgia de comprovação de redesignação sexual. A maioria dos ministros invocou o princípio da dignidade humana para assegurar o direito. Antes o processo enfrentava uma longa espera pela decisão judicial.


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Na decisão do STJ dessa semana, Márcia Rocha explica que a definição do Tribunal não é de súmula vinculante, o que significa que o judiciário brasileiro não será obrigado a seguir a decisão. “Mas é um primeiro caso que pode ser usado como jurisprudência em outros processos. Uma vez que já houve decisão é possível usar em outros casos semelhantes. O juiz é obrigado a pelo menos ter ciência e levar em conta esse caso”, avalia a advogada.

Para as especialistas, há um aspecto central que vai além dessa decisão do STJ e que remete à necessidade de interferir na sociedade por meio de políticas públicas efetivas de maneira a assegurar o direito à igualdade de gênero. Não apenas na lei ou perante o Poder Judiciário, mas em casa, na escola, no trabalho, no setor público e na iniciativa privada. A igualdade de gênero precisa ser, portanto, ensinada, cultivada e exaltada.

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