Nômades digitais: por que estrangeiros estão de olho em trabalhadores brasileiros?

É preciso ter um bom domínio de outros idiomas. Com um laptop e uma boa conexão de internet, dá para desenvolver uma rotina, ter horários flexíveis e conciliar o trabalho inclusive viajando pelo mundo, quando a pandemia permitir/Unsplash
É preciso ter um bom domínio de outros idiomas. Com um laptop e uma boa conexão de internet, dá para desenvolver uma rotina, ter horários flexíveis e conciliar o trabalho inclusive viajando pelo mundo, quando a pandemia permitir/Unsplash
Por conta do home office e do câmbio favorável, empresas de fora contratam cada vez mais pessoas especializadas por aqui.
Fecha de publicación: 13/06/2021

A pandemia transformou a rotina de muitos profissionais e popularizou o home office. Com a crise sanitária e o fechamento de fronteiras, várias pessoas se adaptaram a uma nova rotina e viram as possibilidades de emprego se multiplicarem. Para quem tem boa formação e o privilégio de ser disputado pelo mercado, surge agora a opção de trabalhar para empresas estrangeiras, que estão de olho no nosso mercado em busca de bons profissionais – com a vantagem de pagar valores menores do que os lá de fora, já que a valorização do dólar torna a mão-de-obra por aqui mais barata.

Essas pessoas têm sido chamadas pelo mercado de nômades digitais, profissionais que podem trabalhar de qualquer lugar, de forma remota, sem precisar ir a um escritório nem estar na sede da empresa. Assim, com um laptop e uma boa conexão de internet, é possível desenvolver uma rotina, ter horários flexíveis e conciliar o trabalho inclusive viajando pelo mundo, quando a pandemia permitir.


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A expectativa é que o formato se intensifique nos próximos anos, segundo os especialistas ouvidos por LexLatin. Um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2020 por aqui mostrou que pelo menos 30% das empresas nacionais cogitam manter o trabalho remoto após a pandemia, o que favorece o desenvolvimento desse novo estilo de vida. 

Para Lucas Nogueira, diretor de recrutamento da Robert Half, empresa especializada em oferecer profissionais especializados na área financeira, esse é um movimento que já vem crescendo há pelo menos 3 anos, mas que foi reforçado pela pandemia, principalmente por conta da evolução do trabalho remoto.

“Hoje 80% das vagas trabalhadas pela companhia são para modelo home office, porcentagem que antes da pandemia não chegava aos 5%. O contexto acompanha a tendência de ascensão do 'work from everywhere' [trabalho de qualquer lugar], o que facilita consideravelmente o acesso às vagas internacionais, aumentando tanto a pesquisa quanto a busca por profissionais brasileiros, pois não existe a obrigatoriedade de mudança, aliviando processos de visto, cidadania, passaporte”, explica.

Nogueira acredita que, além da pandemia, o processo de flexibilização da legislação trabalhista no país desde o final de 2017 e a variação cambial impactou nesse mercado, o que pode resultar numa possível fuga de talentos e profissionais mais qualificados.

Entre esses profissionais estão, claro, os da área de tecnologia, segundo o especialista. Mas também há espaço para outros trabalhos intelectuais de maneira geral. “O que costuma destacar o profissional brasileiro nessas posições é a força do mercado nacional. O aspecto mais generalista dos conhecimentos é muito bem visto pelas empresas no exterior, assim como a capacidade de adaptabilidade e criatividade”, afirma.

Mudança radical

Há oito meses a especialista em marketing Karina Menezes mudou o ritmo de vida ao ser recrutada por uma startup que está de olho no mercado brasileiro, a Treble.ai, uma empresa colombiana de automação de WhatsApp que otimiza processos de marketing, vendas e atendimento ao cliente.

Karina Menezes trabalha para uma empresa colombiana

Karina foi encontrada via Linkedin pelo CEO da companhia, que estava recrutando profissionais. “Ele falou comigo inbox, mas chegou através de um conselheiro de uma multinacional que viu meu perfil e achou interessante”, afirma.

“Já tinha passado pela minha cabeça trabalhar para empresas de fora, mas até um tempo atrás achava isso algo impossível por causa das barreiras físicas”.

O fato de falar outros idiomas fez toda a diferença no caso de Karina. Durante a graduação, ela participou do programa Ciência Sem Fronteiras, que levava estudantes brasileiros para intercâmbio no exterior. Isso ajudou a desenvolver o inglês e abriu oportunidades na volta ao Brasil. Depois da experiência, ela também resolveu aprimorar o espanhol.

“Como convivo com pessoas da Colômbia, nada mais justo do que aprimorá-lo já que estamos na América Latina”, diz.  “Toda minha vida fui acostumada a trabalhar presencialmente. Ter essa mudança e fazer home office com pessoas que nunca vi na minha vida, que nem sempre vão estar no mesmo fuso horário, é algo novo para mim”.

O fato de ganhar em dólar e não ter um emprego via CLT foi um momento de adaptação. Muitos profissionais, por não terem carteira assinada nesses casos, precisam se adaptar a um modelo de empreendedorismo individual.

“Resolvi abrir mão da CLT para ter uma experiência global. Financeiramente para mim está sendo ótimo! Eu sei que nesse caso tenho menos segurança, mas o restante tem compensado. Isso serve inclusive para turbinar meu currículo para oportunidades maiores que possam surgir”, afirma Karina.

As questões trabalhistas

De acordo com especialistas da área trabalhista, quem for se aventurar nesse caminho precisa tomar alguns cuidados. O primeiro é fazer um contrato, para definir deveres e obrigações da empresa e do empregado, além das funções a serem realizadas, horário, valor de remuneração, escopo de serviços, número de horas máximas ou mínimas e as questões da possibilidade de rescisão.

Outro ponto importante é saber quem está contratando: é preciso fazer uma investigação da idoneidade da empresa estrangeira e se há algum problema registrado nos últimos anos.

“Quando a contratação se dá de forma direta, sem intermediação de empresas de recrutamento e seleção, o regime é muito informal. O trabalhador brasileiro muitas vezes nem sabe quem é o beneficiário final dos serviços. Algumas empresas têm um contrato, mandam uma remessa do exterior para cá e a pessoa recebe, por exemplo, via Paypal ou em criptomoedas. São regimes criativos e alternativos”, explica Andrea Massei, sócia da área trabalhista do Machado Meyer Advogados.


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Superada essa fase e iniciado o período de trabalho, a advogada orienta que é importante ficar atento às questões tributárias. "Como o trabalhador vai receber este dinheiro? Em muito casos, para evitar problemas com a Receita Federal, que pode ficar de olho em movimentações estranhas na sua conta bancária, é preciso contratar um contador ou alguém especializado que ajude a tributar estas quantias da forma correta. É bom lembrar que no ano seguinte tem imposto de renda e um bom planejamento  evita o risco de ter alguma pendência", diz.

Além disso, como o empregado não está protegido pelos direitos trabalhistas brasileiros, em caso de não pagamento pela empresa contratante o trabalhador terá que entrar com uma ação fora do Brasil.

“Esse profissional fica bastante desprotegido nas questões legais, porque não tem direitos trabalhistas reconhecidos no Brasil. A empresa estrangeira que não está estabelecida no nosso país não tem como cumprir as obrigações de empregadora aqui. Não tem como abrir conta de fundo de garantia para o trabalhador, fazer depósito de INSS e prestar informações oficiais ao governo”, avalia Massei.

Uma forma mais segura para a companhia estrangeira sem sede no Brasil é buscar uma empresa brasileira para prestar os serviços de contratação. Essa empresa contrataria a eventual mão de obra necessária para a realização dos trabalhos, com base nas regras da CLT. "Também dá para contratar diretamente os serviços do profissional brasileiro que tenha empresa aberta e remunerar os serviços por meio de sua empresa, se, de fato, a relação existentes entre as partes for meramente comercial (e não trabalhista)", afirma Arthur Cahen, do escritório Cahen & Mingrone.

Para quem busca uma ocupação numa empresa estrangeira por esse modelo de trabalho um ponto que ainda precisa ser desenvolvido aqui no Brasil, de maneira geral, é a questão do idioma. Para algumas funções, principalmente aquelas mais especializadas, a proficiência em inglês é uma competência mandatória para quem quiser trabalhar em um ambiente global, como uma multinacional. 

Esse movimento dos chamados nômades digitais já chama a atenção de vários países, que começaram a criar vistos para regulamentar os viajantes que atuam em trabalhos remotos. Ao chamar a atenção deste perfil profissional, o objetivo é melhorar a economia local, sem sobrecarregar e gerar concorrência nas oportunidades de trabalho dentro do país para os moradores.

Outro objetivo dos vistos para "trabalhadores estilo home office" está voltado para amenizar as perdas do setor de turismo de cada país, já que viagens a lazer ainda não são recomendadas. Entre os países que oferecem essa modalidade estão Alemanha, Barbados, Bermudas, Estônia, França, Geórgia, Portugal, República Tcheca e Tailândia.

Mas apesar do aumento das oportunidades, ainda é cedo para avaliar a extensão desse novo estilo de vida. “É importante relembrar que não são todos os segmentos e áreas que se adaptam com sucesso ao trabalho remoto. Muitos deverão, no pós pandemia, voltar a funcionar de forma predominantemente presencial”, afirma Lucas Nogueira.       


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“Com a desvalorização do real essas pessoas chegam a ganhar bem mais do que ganhariam no regime celetista [por CLT]. Temos visto trabalhadores pedindo demissão de empresas para abrir uma pessoa jurídica sem qualquer direito trabalhista. Não dá para esquecer que isso envolve uma série de obrigações e encargos”, explica Andrea Massei.

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