No final de julho, o ministro da Economia Paulo Guedes acenou com a possibilidade de um “meteoro” atingir as contas públicas. Não era o aumento do Bolsa Família, previsto por Bolsonaro, nem mesmo as despesas de contenção da pandemia. Estas despesas, no entanto, seriam mais atípicas e profundas nas contas públicas: cerca de R$ 90 bilhões em pagamento de precatórios, dívidas do governo reconhecidas pela Justiça e que devem ser pagas imediatamente, sem a possibilidade de novos recursos.
Os valores têm de ser pagos. Porém, não há mais recursos que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Advocacia-Geral da União possam recorrer e o valor precisa ser incluído no Orçamento do ano seguinte. Em 31 de julho, o Poder Judiciário enviou a conta ao Congresso, que precisa colocar a contingência deste valor no plano orçamentário de 2022.
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Tal como no filme “Armageddon”, estrelado por Bruce Willis em 1998, a solução descrita pelo chefe da Economia no governo de Jair Bolsonaro é “disparar um míssil” contra este meteoro. O míssil chegou em forma de PEC (Proposta de Emenda à Constituição), apresentada nesta semana ao Congresso Nacional. Seu texto, no entanto, passa uma mensagem próxima à do calote.
Uma das principais novidades da PEC é a mudança na regra geral de parcelamento - a União deixará de pagar precatórios acima de R$66 milhões à vista, podendo parcelá-los até o ano de 2029. O pagamento será feito a uma correção referencial pela taxa Selic, menor que o IPCA + 6% que já contou com previsão do STF (Supremo Tribunal Federal).
A equipe econômica do governo federal mira, com a proposta, os 8.771 títulos de precatórios - 3,3% de um universo de mais de 264 mil títulos já definidos para pagamento. O objetivo do governo federal é, com isso, economizar R$ 33,5 bilhões até 2022. Essa seria a maneira encontrada para “explodir o cometa”, tal como no filme.
O texto foi mal visto por quem acompanha a questão. Em uma nota, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) chamou a proposta de “calote com fins eleitoreiros” e citou a metáfora de Guedes novamente. “Novamente, o governo federal invoca o montante da dívida da União como obstáculo ao pagamento de suas obrigações constitucionais e ao financiamento de programa social definindo-o como meteoro”, escreveram.
“Na medida em que se resolve parcelar estes valores, na medida contra o que se determina a decisão judicial, eu entendo que há um descumprimento da decisão judicial e à coisa julgada”, diz a sócia da área de tributário do Machado Meyer, Cristiane Romano. ”O Supremo já passou por essa discussão e certamente chegará novamente ao Tribunal com uma nova discussão.”
Os pagamentos de precatórios da União são dívidas onde não há mais discussão sobre sua natureza, nos explica o professor de jurisprudência e processo do Ibmec, Marco Antônio Sabino. Tais dívidas, no entanto, podem causar um rombo ao erário e prejudicar áreas reais da atuação pública - mas devem ser pagas. “Já houve uma condenação judicial, com processo, com defesa, contraditório e devido processo legal em que a Fazenda foi condenada. Essa é uma dívida líquida e certa onde não há questionamento qualquer”.
A mensagem que o governo passa com a PEC é muito ruim, avalia. “Tem gente que morre sem receber. Que tem que esperar dez anos para o processo acabar e outros vinte para receber”, argumenta. Então, ele aponta o caso de uma empresa hipotética. “Imagina para o investidor estrangeiro. Se a União cobra errado um tributo e o juiz diz que a Fazenda tem de devolver R$ 1 bilhão para a empresa ela vai ter esse um bilhão de reais quando? Quando eu achava que iria receber, vem uma proposta de emenda que muda a Constituição e de repente vou tê-la daqui vinte anos?” Sabino vai além e defende a remuneração com juros do precatório parcelado, uma vez que o valor parado é capital que precisa ser remunerado.
O professor de macroeconomia Renato Veloni também demonstra receio com a saída encontrada pela equipe econômica. “Quanto mais a gente faz essas jogadas financeiras não combinadas, quanto mais a gente se envolve nestas trapalhadas e aberrações, mais o investidor vai exigir um prêmio. Quanto maior o risco, maior o prêmio”, afirma o economista.
O professor garante que, ainda que o reajuste fosse o melhor dos mundos, não é o que o recebedor esperaria. A troca do índice de reajuste piora as coisas, em sua análise. “Se para novas sentenças, decisões e acordos se usasse a Selic estaria de acordo. Mas o ponto é mais uma vez fazermos este acordo e não o cumprirmos.”
Cristiane Romano, a sócia do Machado Meyer, lembra que a proposta pode representar um alívio para o governo, mas que seu custo é bem conhecido. “O custo Brasil aumenta muito nestas ocasiões”, diz, “porque o sujeito foi ao Judiciário, teve uma decisão que lhe garantiu receber estes recursos. A União tem advogados brilhantes, excelente e luta até o fim com todas as armas...e chegar ao final para receber aquele valor - e bom, você não vai receber todo o valor de uma vez.”
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