O decreto do governo Bolsonaro que pretende proibir redes sociais de apagar conteúdos

Proposta determina que provedores não poderão excluir, suspender ou limitar a divulgação de conteúdo gerado pelo usuário em seus aplicativos sem ordem judicial/Pixabay
Proposta determina que provedores não poderão excluir, suspender ou limitar a divulgação de conteúdo gerado pelo usuário em seus aplicativos sem ordem judicial/Pixabay
De acordo com especialistas, não existe uma regulação desse tipo em nenhum outro país democrático, porque seriam declaradas inconstitucionais.
Fecha de publicación: 20/05/2021

Está em discussão, dentro de quatro pastas do governo Jair Bolsonaro, uma dura – e ilegal – resposta a uma ação mais ostensiva de plataformas de publicação de conteúdo e redes sociais. O governo federal planeja, por meio de decreto, regulamentar o Marco Civil da Internet para definir quando e como postagens em redes sociais poderão ser apagadas. A minuta, acompanhada de sua fundamentação jurídica, circula desde a noite de quarta-feira (19) nos bastidores do governo.

LexLatin teve acesso ao documento.  O texto, trabalhado entre os ministérios das Comunicações, Ciência e Tecnologia, Justiça e Segurança Pública e Turismo, prevê a regulamentação do Marco Civil da Internet de 2014, para tornar impossível, sem ordem judicial, "a exclusão, o cancelamento ou a suspensão dos serviços e as funcionalidades das contas mantidas pelo usuário".


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No documento, assinado pelo chefe de gabinete do ministro do Turismo, Hercy Ayres Rodrigues Filho, é apresentado o seguinte problema: "o Decreto nº 8.771, que regulamentou o Marco Civil da Internet, não tratou dos direitos e garantias dos usuários", afirma. "Essa ausência de regulamentação tem permitido que provedores de aplicações de Internet façam a previsão, em seus termos ou políticas de uso políticas próprias de remoção de conteúdo e cancelamento de contas, que afrontam o ordenamento jurídico nacional." 

A medida de regulamentação dos direitos dos usuários não seria diferente da que já foi pensada e executada em outros países democráticos. "Isso foi um longo debate do Marco Civil da Internet, que certamente foi muito influenciado pela legislação de outras jurisdições - incluindo EUA e Europa", explicou a responsável pela área de Privacidade e Proteção de Dados do VMCA Advogados, Marcela Mattiuzzo

Mas há avanços incomuns na intenção do Planalto, explica Marcela: "Legislação que determine obrigação de remoção de conteúdo, no entanto, não é comum - e inexiste nessas jurisdições que mencionei. Esse debate aconteceu durante o governo Trump, que queria alterar a Section 230, mas não prosperou". A advogada se refere à tentativa do ex-presidente americano de derrubar um trecho da legislação de internet local que garante imunidade aos sites por conteúdos ali hospedados por terceiros.

A mesma opinião é dada pelo professor de Direito Comercial da USP, Carlos Portugal Gouvêa: "Em outros países, pelo menos nos países democráticos, o que existe é a proteção da liberdade de iniciativa, da liberdade de associação e da liberdade contratual. Assim, não apenas não existe uma regulação desse tipo em nenhum outro país democrático, como acredito que regulações semelhantes seriam declaradas inconstitucionais", explicou. 

A minuta do decreto, discutida pelo governo brasileiro, determina que os provedores de aplicações de internet não poderão excluir, suspender ou limitar a divulgação de conteúdo gerado pelo usuário em seus aplicativos sem ordem judicial. Algumas das exceções previstas são em casos de ferimento ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), ou contiver casos de nudez, apologia às drogas, ao terrorismo ou discriminação. A pessoa que teve o conteúdo retirado do ar deverá ter a razão explicada e garantida um espaço de contraditório e ampla defesa.

O texto não cita, em suas exceções, casos onde a publicação contraria fatos estabelecidos, ou promove o consumo de medicamentos não recomendados. A discussão do decreto ocorre justamente em um momento em que o próprio perfil de Jair Bolsonaro, de ministros de seu gabinete e de influenciadores relevantes da esfera bolsonarista são alvos de uma ação mais direta de plataformas de hospedagem de conteúdo. 

O comentarista Alexandre Garcia e a ex-apresentadora de TV Leda Nagle, ambos apoiadores do presidente e com mais de um milhão de seguidores cada, têm promovido o apagamento de centenas de vídeos em seus canais, normalmente associados à defesa da cloroquina e da hidroxicloroquina ao tratamento da Covid-19. Os medicamentos, defendidos por Bolsonaro e seus apoiadores, na verdade causam problemas maiores a quem se automedica com a justificativa de "tratamento precoce", causando falência hepática.

Bolsonaro teve vídeos de lives suas apagados do YouTube, assim como postagens suas no Twitter tiveram o alcance reduzido por espalhar desinformação. Com a edição do novo decreto, tal questão poderia estar superada, sem a possibilidade de que as plataformas retirassem o conteúdo do ar.

Marcela aponta que outra peça entraria no xadrez com a edição do texto. Os meios de pagamento, que já são regulados pelo Banco Central e não tem sua relação com a Internet inteiramente clara no decreto. Questionada, a advogada considera que o decreto seria ilegal se publicado. "Me parece questionável a alteração de sanções via decreto, com criação de novas hipóteses. O que está havendo é uma alteração legislativa e não uma regulamentação da lei."

Carlos Portugal também considera a proposta inconstitucional e ilegal. "É inconstitucional, pois viola a liberdade de iniciativa dos provedores de aplicativos da internet e a liberdade de associação daqueles que usam o espaço das redes sociais. O usuário tem o direito de apenas se associar a redes sociais que não violem direitos humanos e outros valores caros para as pessoas", argumenta o jurista. "É ilegal também, pois os usuários firmam um contrato com as plataformas de internet.  Esse contrato, ou termos e condições de uso, precisam ser respeitados."


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LexLatin consultou o Ministério do Turismo, que assina o documento mais recente com a minuta do decreto, sobre seu conteúdo. A pasta disse que a minuta foi enviada para consulta dos órgãos responsáveis e tem como objetivo "tão somente incluir um capítulo no Marco Legal da Internet [sic] no Brasil referente aos direitos do consumidor, de forma a assegurar a proteção dos usuários contra qualquer decisão arbitrária das empresas de Redes Sociais em funcionamento no Brasil". A pasta ressaltou que o texto ainda segue em fase de análise e discussão por parte do governo federal.

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