O dilema ético e jurídico de escolher quem vive e quem morre na fila de uma UTI

Médicos e profissionais de saúde estão tendo que tomar a decisão mais temida por eles nos hospitais de todo o país /Fotos Públicas
Médicos e profissionais de saúde estão tendo que tomar a decisão mais temida por eles nos hospitais de todo o país /Fotos Públicas
Especialistas dão o caminho de como profissionais de saúde devem proceder nesse momento e como evitar processos futuros.
Fecha de publicación: 13/03/2021

O Brasil sofre com os piores dias da pandemia. Com hospitais públicos e privados de todo o país lotados por causa da falta de uma política pública eficaz no combate ao crescimento do número de casos, leitos de internação e UTIs já não são suficientes para todos que precisam de internação. O colapso se aproxima ou já é uma realidade em boa parte das cidades brasileiras, principalmente as maiores. Pelo menos 23 estados e o Distrito Federal romperam a faixa de segurança de 80% de ocupação das UTIs, de acordo com dados das próprias secretarias, e 12 estados estão com ocupação acima de 90%.

 

Com isso, médicos e profissionais de saúde terão que tomar a decisão mais temida por eles desde que começou a pandemia causada pelo coronavírus: a de quem vive e quem morre na fila por uma vaga num hospital ou leito de UTI (Unidade de Terapia Intensiva).


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O Brasil já está entre os países com maior numero de casos e mortes no mundo. Mas por enquanto, ainda não há uma legislação clara sobre o tema. Diante dessa situação, conselhos e associações elaboram protocolos para auxiliar este tipo de decisão feita por hospitais e profissionais do setor.

 

No ano passado, a prefeitura de São Paulo criou uma lista de prioridade para a utilização de leitos de UTI públicos e privados. É um protocolo que será usado caso a maior cidade do país e um dos epicentros da pandemia atinja a lotação máxima. A lista vai obedecer normas internacionais, como a probabilidade de sobrevivência, quadro clínico e a existência de doenças graves associadas.

 

A primeira entidade a elaborar normas para orientar os profissionais de saúde sobre questões de prioridade nessa época de crise foi a Associação Brasileira de Medicina Intensiva. No documento de 73 páginas, divulgado em abril de 2020, estão várias normas e diretrizes importantes para esse momento de esgotamento de recursos.

 

“A decisão de limitar o acesso a recursos escassos, como leitos de UTI, deve ser compartilhada e coordenada em conjunto com diretor técnico do hospital e as autoridades de saúde em nível local, regional ou nacional. Esta decisão somente poderá ser tomada após o esgotamento de recursos de cuidados críticos em nível de sistema de saúde e com declaração de situação de catástrofe”, explica uma das diretrizes.

 

No começo da pandemia, há um ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou orientações para o atendimento médico no Brasil com questões relacionadas aos hospitais.

 

“Os leitos hospitalares devem ser destinados prioritariamente aos pacientes com quadros graves de Covid-19. Recomenda-se aos gestores a suspensão dos atendimentos ambulatoriais e de procedimentos eletivos”, diz o comunicado.

 

Esse é um novo desafio ético e jurídico, comparado, segundo os especialistas, a questões que são tomadas em ambientes de guerra. Algo que está acontecendo pela primeira vez em nível global. Então, o que fazer?

 

Para Felipe Bayma, sócio do escritório Bayma & Fernandes Advogados, para evitar ações administrativas ou criminais o hospital precisa criar um protocolo, com o apoio de um jurídico especializado, com observação das diretrizes das associações médicas brasileiras. 

 

“Para evitar problemas futuros, seria importante encaminhar o protocolo ao Ministério Público local e à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para ciência e manifestação, aos órgãos de fiscalização da sociedade civil. Se eles se manifestarem positivamente, como que num momento posterior eles vão suscitar uma responsabilidade do hospital?”.

 

O advogado explica que, a partir do momento em que o protocolo é validado pela comissão ética, “o médico está resguardado e é obrigado a seguir essas determinações”. 

 

Ana Cândida Sammarco, sócia da área de Life Sciences do escritório Mattos Filho, explica que a regulação da questão é muito difícil do ponto de vista jurídico, porque não há uma solução modelo, aplicável a todos os casos. Cada caso tem que ser analisado com muito cuidado e diante das circunstâncias.

 

“Primeiro temos o princípio do direito à saúde sem nenhum tipo de diferença ou discriminação e dignidade humana. Como o médico vai compor estes princípios? Tem que se garantir que todas as medidas possíveis foram tentadas para evitar a escassez de recursos”, afirma.

 

“Acho que o principal recado aqui é que todas as decisões médicas tem de ser pautas por protocolos médicos, que sejam definidos pelo hospital ou pela própria Secretaria de Saúde, e que tire do médico a questão da pessoalidade na decisão”.

 

Marcos Sérgio de Almeida Cavalcanti Ribeiro, sócio da área de Direito Penal Empresarial do escritório Siqueira Castro, afirma que a situação de pandemia, a falta dos insumos necessários para manter a vida de um paciente e a questão de que de fato foi preciso fazer escolhas são argumentos importantes nessa discussão.

 

Também é fundamental seguir o prontuário médico e o fato de a recomendação para cada paciente ser diferente, além das leis brasileiras: a Constituição, o Código de Ética Médica, as resoluções do Conselho Federal de Medicina e da Associação Brasileira de Medicina Intensiva, que é a entidade mais próxima que regula estas escolhas.

 

“Numa situação de pandemia, a preocupação do médico deve ser a de seguir os protocolos existentes. Fora disso, abre-se um flanco para que a atitude dele possa ser condenada e questionada judicialmente. Os hospitais precisam ter um controle de estoque e insumos, para que tudo seja registrado, para que a decisão seja dada pelos dados existentes”, analisa.

 

Rogério Taffarello, sócio da área de Direito Penal Empresarial do escritório Mattos Filho,  explica que, mesmo com o cumprimento dos protocolos, haverá uma chuva de processos.

 

“Conhecemos muitos casos no Direito Médico ou Direito Penal Médico em que o protocolo foi cumprido, não houve nenhum erro, mas ainda sim a família tem uma dificuldade de aceitar e procura Ministério Público, polícia e conselhos médicos. E aí instauram-se procedimentos administrativos e investigações criminais”, afirma.  

 

Uma parte destes casos será judicializada porque a perda de um ente querido é um trauma para as famílias e algo muito doloroso. Para ele, a carga de subjetividade desse tipo de decisão começa de quais escolhas devem ser feitas pelos profissionais de saúde e também de quem avaliará essa matéria no Judiciário.

 

“Nesse caso a responsabilidade criminal é da pessoa física, mas isso não significa que haja outras responsabilidades para as pessoas jurídicas. No caso dos hospitais, a responsabilidade é civil e inclui o direito de indenizar e reparar danos morais”, diz.

 

Escolhas entre a vida e a morte

 

Em uma situação típica de estado de pandemia muitos hospitais têm várias pessoas para serem atendidas e não conseguem dar o mesmo nível de tratamento para todos.

 

Outra questão relevante acontece com casos de pacientes classificados em estado terminal, com poucas chances de sobreviver.

 

Para Yuri Sahione, sócio da área Penal dos escritório Cescon Barrieu, diante dessa escassez de recursos não há como “prolongar a vida de pessoas que já têm uma situação clínica irreversível e terminal”, a situação chamada distanásia.

 

“Nesses casos, a recomendação da Associação Médica Intensivista Brasileira e do próprio Conselho Federal de Medicina é no sentido do médico interromper, limitar e suspender este tipo de tratamento paliativo para aquelas pessoas que são consideradas terminais”, afirma.

 

Segundo Sahione, essa não é uma decisão individual do médico. “É necessário que ele constate a limitação dos recursos, faça o registro no prontuário, o nível de gravidade do paciente dentro de uma escala de prioridade dentro do CFM, avisar o diretor técnico do hospital e a instituição, além de fazer a comunicação para as autoridades”.


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Angela Kung, que é sócia da área de Saúde do escritório Pinheiro Neto, explica que em Nova Iorque os médicos foram blindados e tiveram o poder de tomar este tipo de decisão.

 

“Aqui no Brasil seria preciso uma lei para dar legitimidade a esse tipo de ato. No fim das contas, parece que você está condenando algumas pessoas à morte, mas pelo contrário, o que se está é tentando salvar vidas”, afirma.

 

“A gente teria que mudar a lei, alterando os dispositivos para não tipificar como crime essas atitudes ou decisões ou olhar no Código Penal que tipo penal esse tipo de tomada de decisão recairia para criar aí uma isenção ou exceção”, explica Kung. “Em termos de responsabilidade civil, também seria preciso alguma lei que desse esse conforto para os médicos, esse poder de tomada de decisão sem que respondessem pelas consequências”, afirma.

 

Para os especialistas, nestes casos mais extremos é preciso ser pragmático e objetivo. Mas olhando do ponto de vista humano e das famílias, cada vida importa, ainda mais num momento em que mais de 275 mil pessoas no país já perderam suas vidas vítimas do coronavírus.

 

*Diante do recorde do número de casos, este texto originalmente publicado em 2020 foi atualizado em março de 2021.

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