O que há de legal - e de eleitoral - no veto ao filme de Danilo Gentili?

Pressão de conservadores motivou veto ao filme de 2017/ Divulgação
Pressão de conservadores motivou veto ao filme de 2017/ Divulgação
Especialistas apontam que a medida é censura. Lei diz que Ministério da Justiça não pode definir o que o cidadão pode ou não ter acesso.
Fecha de publicación: 17/03/2022

O filme “Como se tornar o pior aluno da escola” é ruim – ao menos para os críticos de cinema especializados, que definiram a comédia de 106 minutos como “feito totalmente com piadas sujas e bobas” ou dona de “piadas, como era de se esperar, não muito elaboradas ou sofisticadas”. Mas apenas agora, quatro anos e meio depois de lançado, o filme alcançou sua fama. E não foi por nenhum motivo relativo a si próprio.

Desde o último final de semana, o filme vem sendo alvo de críticas de atores políticos conservadores contra seu conteúdo – e uma cena em especial foi utilizada para indicar que o filme promove a apologia à pedofilia. A discussão das redes escalou o patamar quando o Ministério da Justiça resolveu obrigar as plataformas de streaming a retirar o conteúdo do ar, sob pena de multa. 


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Para quem atua com direito autoral, a decisão do governo é polêmica, e é um prenúncio de um ano onde tais discussões ficarão ainda mais comuns. “Temos um grande problema para resolver enquanto sociedade: como lidar com a liberdade de expressão e com o controle daquilo que precisa ser controlado”, alerta Maurício Tamer, advogado da área de Direito Digital do Machado Meyer Advogados. “Daqui a duas semanas teremos um novo case, e neste ano deveremos ter isso cada vez mais presente no cenário eleitoral.”

Mas antes, vamos rebobinar a fita e retomar os fatos:

A cena em questão envolve o diretor da escola, interpretado por Fábio Porchat, e dois alunos. Para resolver a briga dos jovens, o diretor oferece uma saída que envolve um ato sexual. Após ambos os alunos discutirem, a cena sofre um corte e retorna segundos depois, dando a impressão de que o ato aconteceu. 

No último domingo (13), o secretário Nacional de Cultura, Mário Frias, chamou a atenção para a cena, indicando que os atores e autores do filme faziam a apologia à pedofilia e chamou a obra de “asquerosa”. No dia seguinte, o Ministério da Justiça agiu e exigiu, por meio de despacho da Secretaria Nacional do Consumidor, a obrigar que Google (dona do YouTube), Netflix, Apple e Globo (que controla a Globoplay e Telecine) que retirassem o vídeo de circulação. Caso eles não o façam até este final de semana, seriam multados em R$50 mil ao dia.

A Globo se manifestou publicamente e disse que a decisão seria uma tentativa de censura – e por isso, manteria o filme disponível. “As plataformas respeitam todos os pontos de vista, mas destacam que o consumo de conteúdo em um serviço de streaming é, sobretudo, uma decisão do assinante”, escreveu a Globo em um comunicado, “e cabe a cada família decidir o que deve ou não assistir.” Na quarta-feira (16), o filme foi reavaliado pelo Ministério da Justiça e sua classificação indicativa foi alterada de 14 para 18 anos. 

Há aspectos políticos sobre a discussão: o tema do combate à pedofilia e a proteção infantil é caro ao eleitorado de extrema-direita que Mário Frias tenta angariar - o secretário e ex-ator deve se candidatar a deputado federal nestas eleições. Entre setores da esquerda, há quem veja no episódio uma clássica “cortina de fumaça” bolsonarista, uma vez que a alta descontrolada de combustíveis e de alimentos domina a discussão pública há meses.

De qualquer modo, a ação do Ministério da Justiça é sim um ato, na visão de Luciano Andrade Pinheiro, advogado especialista em propriedade intelectual e sócio do Corrêa da Veiga Advogados. “Sim, é uma censura. O governo não pode usar uma régua moral para definir o que o cidadão pode ou não pode ter acesso”, pondera. “O Supremo Tribunal Federal tem uma linha de interpretação que define a liberdade de expressão como plena, exceto quando se está diante de um crime grave e evidente.” 

No filme em questão não há nenhum crime sendo cometido, defende o advogado. “E no Brasil, o Poder Executivo não pode se impor contra o cidadão dessa forma, sem uma decisão judicial”, conclui. 


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Maurício Tamer lembra que pessoas que se sentissem com o direito obstruído ou atacado pelo filme poderiam acionar a Justiça pela retirada – e que uma análise crua do filme poderia apontar se a obra de fato cometeu crimes. 

No entanto, a realidade hoje é diferente, e o streaming dá mais controle ao usuário – e não ao canal de televisão ou programa de rádio – sobre o que ele tem ou não acesso. “O caminho de você ligar um streaming, assinar o serviço e acessar o produto é um pouco mais demorado e complicado que ligar a TV”, compara.

O desafio, conclui Maurício, passa por uma revisão de como passarão a atuar as classificações indicativas a partir de agora, em um momento em que elas serão levadas cada vez mais ao estresse. “Isso de certa forma será mais seguro para a própria plataforma”, diz. “Quando alguém tem um aceite sobre a classificação indicativa, ela tem sempre o posicionamento de alguém que passou a informação de que está ciente sobre o que irá ver.”

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