O que vai acontecer com a Prevent Senior após o fim da CPI da Covid?

Escândalo sem precedentes na história do Brasil e América Latina acusa operadora de saúde de usar pacientes como cobaias para estudos experimentais durante a pandemia/Divulgação/Prevent/Alan Santos/PR
Escândalo sem precedentes na história do Brasil e América Latina acusa operadora de saúde de usar pacientes como cobaias para estudos experimentais durante a pandemia/Divulgação/Prevent/Alan Santos/PR
Operadora será indiciada por incentivo a "tratamento precoce" e é investigada na Polícia Civil, Ministério Público e Justiça do Trabalho.
Fecha de publicación: 15/10/2021

A CPI da Covid inicia a leitura do seu relatório final nesta quarta-feira (20). A aprovação da investigação tem previsão de ser votada no próximo dia 26 de outubro. O senador Renan Calheiros, do MDB de Alagoas, deve tomar o dia lendo as conclusões de quase seis meses de comissão, sessenta reuniões e mais de 2770 documentos.

Indicações dos senadores nos últimos meses apontam que o presidente Jair Bolsonaro será indiciado como um dos responsáveis pela condução catastrófica da pandemia que levou à morte mais de 600 mil brasileiros. A prévia do relatório aponta indiciamento de mais de 60 pessoas - como ministros de Estado, integrantes e ex-funcionários do Ministério da Saúde e empresários. Apesar do foco em agentes públicos, agentes privados devem ser responsabilizados, mas nenhum deles sob maior ameaça que a Prevent Senior.

A operadora de planos de saúde para idosos está sendo investigada pela CPI por condutas criminosas sem precedentes na história brasileira e da América Latina durante a pandemia. Um dossiê elaborado por médicos e ex-médicos da rede denunciou que a empresa ocultou mortes de pacientes, prescreveu o “kit Covid” - que contém medicamentos não comprovados cientificamente no combate à doença - e ainda utilizou pacientes como cobaias para avaliar o uso dos remédios sem eficácia.

O dossiê sugere que essa pesquisa foi realizada por um acordo entre a empresa e o governo federal. Ela foi divulgada e enaltecida pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, como exemplo de sucesso do uso da hidroxicloroquina contra o coronavírus. 

De acordo com o dossiê divulgado por ex-funcionários da Prevent, os médicos da operadora eram orientados a modificar os prontuários dos pacientes com Covid-19. Depois de 14 dias ou 21 dias os pacientes tinham o CID (Código de Diagnóstico) modificado para qualquer outro exceto o B34.2, que é o código da doença. 

Na CPI da Covid em Brasília o diretor-executivo da operadora, Pedro Benedito Batista Júnior, confirmou a informação. “Todos os pacientes com suspeita ou confirmados com Covid, na necessidade de isolamento, quando entravam no hospital, precisavam receber o B34.2, que é o CID de Covid (...). Após 14 dias - ou 21 dias para quem estava em UTI -, se esses pacientes já tinham passado dessa data, o CID já poderia ser modificado porque eles não representavam mais risco à população do hospital”, afirmou. Em relação à pesquisa, o diretor negou ter compartilhado qualquer informação com o presidente da República. 

Duas recentes audiências da comissão averiguaram as denúncias - um dos maiores escândalos da pandemia. Em uma delas, que ouviu a advogada Bruna Morato, foi revelado que a Prevent Senior mantinha uma cultura empresarial de pressão para aplicação do coquetel de medicamentos ineficazes contra a Covid-19, entre eles a hidroxicloroquina e a ivermectina. 

A advogada, que representa médicos e ex-médicos da empresa, indicou uma possível ligação entre o Ministério da Economia (que queria que a pandemia não fechasse comércios e prejudicasse a performance econômica do país) e a operadora, que passou a defender o chamado “tratamento precoce”.

No penúltimo depoimento tomado pela CPI, a denúncia feita de forma indireta pela representante ganhou rostos: um médico demitido pela Prevent confirmou a coação para o receituário de medicamentos ineficazes e um paciente tratado de maneira paliativa sem necessidade expôs sua história aos senadores, em um dos depoimentos mais simbólicos da fase final da CPI.

Representantes da empresa têm defendido a tese que “acusações infundadas” foram feitas contra a Prevent nas últimas semanas. Mas a exposição negativa contra a operadora deve continuar mesmo depois dessa semana: os senadores devem realizar uma romaria para apresentar o texto às outras autoridades, como a PGR (Procuradoria-Geral da República), órgão máximo do Ministério Público Federal (MPF).

Depois da votação do dia 26, parte dos senadores deve ir até São Paulo apresentar o relatório ao Ministério Público local e aos vereadores da cidade, que têm uma CPI aberta na Câmara Municipal unicamente para investigar a Prevent Senior. A capital paulista é onde está boa parte dos beneficiários da operadora.

O primeiro a ser ouvido pela comissão foi o coordenador da Vigilância Sanitária da Prefeitura, Luiz Artur Vieira Caldeira. “O estado tem uma área técnica robusta e competente. Não temos dúvida do trabalho de excelência que eles fazem. O motivo pelo qual o estado não deu a resposta formal, não temos como julgar o porquê. Pelo estado ser o responsável legal pela regulação e ter a competência de intervir sobre o que o hospital pode ou não fazer e penalizar, nós passamos ao estado por competência. Nós seguimos no município fazendo o monitoramento epidemiológico”, disse Caldeira aos vereadores.

Em seguida, foi a vez do supervisor do Departamento de Uso e Ocupação do Solo, Carlos Roberto Candella, da Secretaria das Subprefeituras. Candella falou por uma hora e prestou esclarecimentos sobre a falta de alvarás de funcionamento de sete hospitais da Prevent Senior em São Paulo. Ele ficou de apresentar esclarecimentos em outra sessão. 

Outras investigações

A empresa também é alvo de investigações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e do Ministério Público do estado. Elas vão analisar se a Prevent Senior realizou crimes como falsidade ideológica, omissão de notificação de doença, homicídio e danos morais coletivos.

Na última quinta-feira (14), a ANS estabeleceu um regime especial de direção técnica na Prevent Senior. O objetivo é traçar um diagnóstico da situação da operadora e identificar anormalidades que possam colocar em risco a assistência aos beneficiários. A direção será realizada por Daniela Kinoshita Ota e vai durar um ano. No final do período, a diretora apresentará um relatório à ANS, que define medidas a serem adotadas.

“Vale ressaltar que não se trata de uma intervenção, pois a ANS não interfere na gestão da operadora, mas de um acompanhamento com análises permanentes de informações e definição de metas a serem cumpridas pela operadora. O processo de acompanhamento não altera em nada o serviço de atendimento aos beneficiários, que deverá ser mantido normalmente e em tempo oportuno”, esclareceu a ANS em um comunicado. 

Em nota, a Prevent Senior declarou que vê como positiva a decisão da ANS e que as análises técnicas e a inspeção da agência restabelecerão a verdade dos fatos. "A Prevent vai colaborar com total transparência com o regime de direção técnica e com os demais órgãos fiscalizadores", afirmou a empresa.

A Prevent Senior também está na mira do Ministério Público de São Paulo (MP-SP)  e do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, que estão atuando em conjunto

Em depoimento ao MP-SP, familiares de nove pessoas que teriam morrido durante o estudo - internados em hospitais da rede ou que faziam tratamento em casa - disseram que as vítimas tomaram o “kit covid”.

“O que a gente já ouviu foram familiares que falaram que houve uso desses medicamentos de ineficácia comprovada, que as pessoas faleceram na rede hospitalar ou até mesmo em casa mas tomando alguns medicamentos indicados”, disse Everton Zanella, promotor que faz parte da força-tarefa que investiga os casos. “Nós temos que verificar pericialmente se esse uso de medicação efetivamente leva ao óbito”.

A empresa é investigada ainda pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) por assédio moral organizacional, que significa a prática de condutas abusivas e humilhantes junto aos empregados.

O diretor da operadora, o médico Pedro Benedito Batista Júnior, negou a prática de crimes e uso de pacientes como cobaias.


Leia também: Com CPI da Covid perto do fim, senadores tentam enquadrar Bolsonaro até fora do país


As denúncias, que têm causado estragos ao nome da empresa, poderiam alcançar os médicos que atendem na Prevent Senior e que administraram os tratamentos ineficazes? 

A Sócia-Proprietária do escritório Maia & Munhoz Consultoria e Advocacia, Luciana Munhoz, explica que, do ponto de vista da bioética, a análise é caso a caso - e dependerá de uma rica produção de provas. “Vamos pressupor que na defesa do profissional, ele determine que ele foi obrigado pela operadora a fazer isso, aí já estamos falando de outras esferas que podem adentrar não somente no âmbito civil como nesse caso, mas também no âmbito ético e que aí vai envolver Conselho Regional de Medicina e adentrar em outras perspectivas, até penal, dependendo da situação”, afirma a advogada. 

A corresponsabilidade destes médicos será a chave para comprovar um ato criminoso mas, por ora, a advogada descarta que isso ocorra apenas com o relatório final. “A CPI traz algumas determinações que podem apoiar processos futuros, mas com certeza vai ser necessário ainda uma investigação mais aprofundada dessa questão”, assegura.

Com a repercussão negativa e a revelação dos fatos estarrecedores, uma onda de processos contra a empresa no futuro, movida por ex-clientes e também seus sucessores, passa a ser considerada. Há maneiras de evitar que a Justiça brasileira não se sobrecarregue?

“A Justiça não tem como controlar o ingresso de demandas judiciais, pois esta medida é escolha das partes”, afirma Bruno Milanez, doutor em Direito Processual Penal pela UFPR (Universidade Federal do Paraná). Há saídas, no entanto: “De todo modo, seria possível que a própria empresa, reconhecendo eventuais equívocos, atuasse buscando soluções de consenso assim que as demandas fossem aforadas pelas partes.”

Por fim, ressalta Luciana Munhoz, a grande lição aprendida com o caso da Prevent Senior na CPI é relativa ao consentimento. O protocolo de informar o paciente sobre os tratamentos não apenas resguarda as partes, como torna a informação tangível ao paciente.

“Não existe nenhuma norma que obrigue a utilização dos termos de consentimento no âmbito da assistência médica, mas hoje em dia já temos um leque de jurisprudência muito grande demonstrando a necessidade desse termo na assistência médica”, indica a advogada. “Porque o consentimento e a ausência de informação já é uma causa de pedir por si só. A ausência de informação pode ser algo que o paciente da Prevent Senior entre contra o plano para alegar que teve um dano.”

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