O uso de criptomoedas na América Latina

Os desafios começam no acesso: a média geral bancária na região é de cerca de 55%, segundo o Bankingly. / Unsplash, Dmitry Demidko.
Os desafios começam no acesso: a média geral bancária na região é de cerca de 55%, segundo o Bankingly. / Unsplash, Dmitry Demidko.
Veja como outros países e bancos centrais da região tratam o tema.
Fecha de publicación: 04/03/2022

O uso de criptomoedas como equivalente ao papel-moeda tem sido uma das maiores discussões não só dentro dos governos ou ministérios da economia e bancos centrais, mas também no campo jurídico: uma criptomoeda, como o bitcoin ou o ethereum, pode funcionar como um nota normal?

A penetração do uso de criptomoedas na América Latina avançou. Segundo a Finder, provedora de informações financeiras, México e Argentina têm a maior presença de criptomoedas entre os cidadãos latino-americanos, com 15,2%, segundo a última pesquisa realizada no final do ano passado. Seguido da Venezuela, com 14,6% e a Colômbia com 14,5%, valores superiores aos registados pelos Estados Unidos, onde apenas 10,5% da população tem carteira de criptomoedas.

El Salvador foi o primeiro país a aceitar esse tipo de moeda como de uso legal, algo não bem visto pelo Fundo Monetário Internacional. Desde 7 de setembro, entrou em vigor a lei do Bitcoin, promovida por Nayib Bukele, chefe do Executivo. A referida lei confere ao bitcoin o status de moeda corrente, algo que impacta no reconhecimento de outras nações ao entrar no mercado de câmbio e pode ser utilizado como referência cambial.

Outros cenários apontam para a Bolívia, onde o uso de criptomoedas foi proibido; na Venezuela seu uso foi incentivado com a regulamentação da criptomoeda PETRO. Na Argentina, as províncias optaram por regulamentações diferentes e no México, por enquanto, rege a interpretação de seu uso, e as instituições financeiras só podem usá-lo internamente.

Os desafios começam com o acesso: a taxa geral de penetração bancária na região é de cerca de 55%, segundo a Bankingly, fornecedora de serviços financeiros digitais. Em países como El Salvador, México, Haiti e Nicarágua, apenas cerca de 30% dos adultos têm acesso a uma conta bancária.

Diante do crescente uso desses ativos digitais, Diego Ramos, diretor da equipe financeira, fintech e cripto do escritório Ramos, Ripoll & Schuster, explica que os advogados terão um grande desafio: se envolver. "Vamos ter que questionar os conceitos jurídicos tradicionais que foram regulamentados e que alguns deles terão de evoluir", refere.

Ramos afirma que a América Latina teve uma melhor adoção de criptomoedas do que os Estados Unidos, onde o modelo parece mais especulativo. A isso ele acrescenta que na região o sucesso pode ser devido ao seu uso na troca de remessas e no acesso a serviços financeiros básicos que não podem ser obtidos de outra forma.


Leia também: O que fazer com criptoativos apreendidos?


México, um conflito de interpretação

O marco regulatório mexicano para esse assunto está incluído na 'Lei das Fintechs', que descreve parte do escopo das criptomoedas, explica Juan Conde, fundador da Novus Concilium, escritório de advocacia especializado na representação de empresas de tecnologia.

Desde o início, o país não reconhece criptomoedas (como bitcoin ou ethereum) como moeda legal e, portanto, não possuem poder liberatório, ou seja, transações entre indivíduos semelhantes às realizadas com o peso mexicano não podem ser realizadas.

O México é o número 14 entre os 27 países do mundo que têm uma presença crescente de criptoativos, seja como instrumentos de investimento, por meio de empresas de tecnologia que funcionam como casas de câmbio, como a Bitso, uma das poucas aprovadas pelo Banco do México, ou para adquirir outros bens em plataformas internacionais, como a Binance.

Nenhuma lei no México define formalmente o que é uma criptomoeda e nem um criptoativo, mas a Lei das Fintechs é baseada no conceito de ativo digital, explica Ramos.

E aí, para o especialista, está um dos problemas de interpretação do uso das criptomoedas, pois a lei mexicana estabelece que um ativo virtual é "uma representação de valor registrada eletronicamente e utilizada entre o público como meio de pagamento para todos os tipos de atos jurídicos, cuja transferência só pode ser realizada por meio eletrônico. Em nenhum caso, a moeda com curso legal em território nacional, moeda estrangeira ou qualquer outro ativo denominado em moeda com curso legal ou em moeda estrangeira será entendido como um ativo virtual", expõe.

De acordo com a Lei Monetária Mexicana, a única moeda legal, também chamada de moeda corrente, é o peso. Essa definição a torna a única moeda válida para cobrir as obrigações em todo o país. Para Ramos, aliás, nenhuma criptomoeda se enquadra na definição de ativo virtual:

“Nenhum criptoativo atende às características, primeiro porque 'meio de pagamento' é um conceito que deve ser interpretado legalmente, não coloquialmente, mas do ponto de vista técnico, o Banxico disse que o meio de pagamento é aquele que pode ser usado como dinheiro e as criptomoedas não são, de fato, meios de pagamento”, detalha o especialista.

De acordo com a Lei das Fintechs, nenhuma instituição bancária pode intermediar operações com criptomoedas (artigo 33). Além disso, um ponto fundamental: a legislação atual não é clara em quais casos ou em quais circunstâncias um corretor de criptomoedas deve denunciar as operações realizadas por um cidadão, algo que se torna relevante quando se fala em ações de combate à lavagem de dinheiro.

A Procuradoria de Defesa do Contribuinte (Prodecon) publicou um estudo preliminar sobre a aplicação da lei tributária para a obtenção de renda na compra ou venda de criptomoedas, embora utilize a definição de 'ativo virtual'. Lá, o Prodecon estabelece que as leis aplicáveis ​​para a obtenção de lucros relacionados às criptomoedas são aquelas inerentes à venda de ativos.

A esse respeito, Eduardo Mendoza, professor e economista da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), indicou que, embora exista um estudo desse tipo do Prodecon, não há regulamentação como tal, mas sim uma espécie de mercado "cinza" onde O contribuinte tem a opção de declará-lo ou não como parte de sua renda.

Mendoza acrescenta que o Ministério da Fazenda está trabalhando em um modelo tributário semelhante ao que se aplica aos contribuintes que auferem rendimentos acima de 230 mil pesos (11.335 dólares) e aos que aplicam uma alíquota de cerca de 2% sobre sua fatura anual. Neste ponto, deve-se notar que a Assembleia Nacional da Venezuela está discutindo uma iniciativa para reformar a Lei de Imposto sobre Grandes Operações Financeiras, onde as operações com qualquer moeda estrangeira e criptomoedas estarão sujeitas a uma taxa entre 3% e 20%.

Argentina, a busca de uma base tributária

Este país sul-americano é outro dos de maior penetração e uso de criptoativos entre sua população. Até o presidente Alberto Fernández sugeriu que o uso de criptomoedas pode servir como medida de combate à inflação.

Na Argentina, dependendo da província em que haja registro fiscal, será o regulamento e, apesar dessa falta de aprovação, Juan Diehl Moreno, sócio de Marval O'Farrell Mairal, garante que as criptomoedas já quebraram a barreira de entrada no mercado mercado, algo que se baseia em um contexto de alta desvalorização, inflação e restrições cambiais, além de um aumento de casas de câmbio locais que têm oferecido opções para adoção de produtos de criptomoedas.

“O principal desafio apresentado atualmente pelas operações com criptoativos na Argentina é que eles não estão mais sendo usados ​​como refúgio da desvalorização ou como investimento em determinado ativo; é possível que venham a fazer parte do nosso dia-a-dia”, explica Diehl Moreno.

Na Argentina, assim como no México, as criptomoedas não são consideradas dinheiro legal, de acordo com o Banco Central da República Argentina (BCRA), no entanto, não são emitidas por um banco central ou autoridade governamental.


Veja também: O ecossistema fintech na América Latina


O Banco Central daquele país tem insistido em informar que as operações com criptomoedas apresentam riscos devido à sua volatilidade, falta de salvaguardas e até risco de lavagem de dinheiro. Nesse sentido, o BCRA lançou uma pesquisa no final de dezembro de 2021 sobre empresas que oferecem retornos extraordinários em criptoativos e criptomoedas, e que considera irracionais com parâmetros de operação financeira.

O sócio de Marval O'Farrell Mairal indica que outro risco é a incerteza quanto à regulamentação das criptomoedas, além da necessidade de um arcabouço legal de acordo com os riscos reais apresentados por esse tipo de ativo.

Na opinião de Gabriela Salazar, sócia fundadora da RNMS Abogados e membro da Aliança Latino-Americana para a Inovação Jurídica (ALIL), a Argentina está em um ponto intermediário em termos de abordagem regulatória, em relação às posições dos países latino-americanos, porque embora não considera as criptomoedas como moeda legal, está fazendo esforços legais para estabelecer uma base tributária.

O anterior refere-se à Lei 27.430, do Imposto de Renda, onde se indica que a venda de bem ou ativo é tributada à alíquota de 15%, desde que o resultado da venda tenha significado lucro ou ganho para o cidadão que vende e não uma perda.

El Salvador, uma alternativa para remessas

O país centro-americano é aquele que, até agora, concordam os especialistas consultados pela LexLatin, foi mais longe na tentativa de transferir os benefícios das criptomoedas para o dia a dia de seus cidadãos, já que integrou o bitcoin como moeda legal.

“Em meio a grande polêmica, dito país está operando com Bitcoin, ativo virtual que teve um crescimento significativo em seu valor durante os meses de outubro e novembro de 2021, e depois sofreu queda nos meses de dezembro de 2021 e janeiro deste ano”, aponta Gabriela Salazar.

Durante o último mês, o bitcoin aumentou seu preço em 2,8%, chegando a 44.368 dólares.

A chamada Lei do Bitcoin em El Salvador está contida em um decreto publicado pela Assembleia Nacional, que estabelece -entre outras coisas- a paridade entre a referida criptomoeda e o dólar, cuja taxa de câmbio será definida pelo mercado, além da fato de que todos os preços expressos no país podem ser em bitcoins e, inclusive, o pagamento de impostos pode ser feito nessa moeda digital.

De acordo com Mario Lozano, sócio responsável pela área de criptoativos da empresa centro-americana Arias, El Salvador está em fase de adaptação e com isso espera-se que durante este ano aumente o apetite por investimentos em seu ecossistema.


Não perca: Qual é o futuro da moeda?


Segundo Lozano, o desafio mais importante nessa área para El Salvador é “informar e educar a população sobre essa nova tecnologia. Isso é ainda mais importante devido à natureza descentralizada que a tecnologia blockchain proporciona, ou seja, sem a existência de uma entidade centralizada que possa reverter transações em caso de erro ou fraude”.

Na economia do país, as remessas desempenham um papel importante e o uso de criptoativos representa uma alternativa que parece atraente para as pessoas, especialmente agora durante a pandemia, quando a adoção digital se acelerou em El Salvador.

A adoção do bitcoin como moeda para uso legal – considerando sua flutuação nos últimos meses – levou o Fundo Monetário Internacional (FMI) a pedir ao governo de Nayib Bukele que limitasse o alcance da lei.

“(Os diretores do FMI) pediram às autoridades que limitassem o escopo da lei Bitcoin, eliminando seu status de moeda legal. Alguns diretores também levantaram preocupações sobre os riscos associados à emissão de títulos lastreados em Bitcoin”, observou o FMI em um comunicado de imprensa de 25 de janeiro.

Para Aldo Rodríguez, cofundador do Lawgic Simple e Claro, plataforma de serviços de educação jurídica em temas jurídicos inovadores, a beligerância do Fundo está no fato de que deve garantir que o país possa fazer frente ao pagamento de dívidas e possa cobrir condições para novos desembolsos, mas a aceitação do bitcoin entre os salvadorenhos apoia a política de Bukele.

“É uma questão de soberania, o Fundo representa os interesses de vários países, mas ao mesmo tempo El Salvador tem apoio, por enquanto terá apoio da comunidade”, diz Rodríguez.

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.