Os desafios do Brasil na presidência do Mercosul

Bolsonaro afirmou que o Brasil atuará pela abertura e integração do bloco nas cadeias regionais e internacionais/Fotos Públicas
Bolsonaro afirmou que o Brasil atuará pela abertura e integração do bloco nas cadeias regionais e internacionais/Fotos Públicas
País terá que lidar com mudança na tarifa externa comum e flexibilização de negociações com países fora do bloco.
Fecha de publicación: 14/07/2021

Na semana passada, na 58ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul e Estados Associados, a Argentina passou para o Brasil a presidência temporária do Mercosul. Os países membros do bloco (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) revezam a presidência a cada seis meses. Durante esse período, o Brasil terá que lidar com duas principais divergências entre os membros do bloco: a mudança na tarifa externa comum e a flexibilização para negociações com países externos ao bloco.

Ao assumir a presidência, Jair Bolsonaro afirmou que o Brasil atuará pela abertura e integração do bloco nas cadeias regionais e internacionais. “Queremos que nossos sócios de integração sejam nossos companheiros nessa caminhada para a prosperidade comum. É por isso que, em nossa presidência de turno que se inicia hoje, continuaremos a trabalhar pelos valores originais do bloco, associados à abertura e à busca da maior e melhor integração de nossas economias nas cadeias regionais e internacionais de valor”, disse.

Na análise do professor de Direito Internacional e chefe do Departamento de Direito Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da USP, José Augusto Fontoura Costa, o governo brasileiro e particularmente o Ministério da Economia, na realidade, mantém uma postura muito hostil em relação ao Mercosul. 

“A verdade é que a presidência brasileira deve realizar os maiores esforços possíveis para tentar afastar aquilo que é obrigatório no Mercosul, tanto em termos de Tarifa Externa Comum quanto em termos de aplicação da cláusula da nação mais favorecida, para poder oferecer vantagens maiores do que as oferecidas no Mercosul dentro de outros âmbitos. Deve ser uma presidência voltada a reduzir a importância e a capacidade do Mercosul”, afirmou.


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A discussão em torno da abertura esquentou durante a reunião do aniversário de 30 anos do Mercosul, em março deste ano, quando o presidente uruguaio, Lacalle Pou, manifestou que o bloco era um empecilho para a abertura econômica do seu país. Atualmente, pelas regras do Mercosul, os países membros só podem negociar acordos de livre comércio com terceiros em bloco. No entanto, o Brasil e a Argentina lideram as negociações comerciais e os outros dois países não recebem o retorno esperado. 

Nesse contexto, o presidente argentino, Alberto Fernández, disse que se o Mercosul é um peso para algum dos países membros, “que saiam do barco e tomem outro”. Lacalle Pou manifestou em seu discurso na cúpula que não vai romper com o Mercosul porque a decisão “não significa violar nem violentar a regra de consenso” do bloco. Mas comunicou que o Uruguai vai começar a negociar com terceiros. 

Fernández frisou em vários momentos da sua fala que o Tratado de Assunção, tratado fundacional do Mercosul, estabelece que as negociações têm que ser iniciadas e concluídas de modo conjunto e que qualquer proposta tem que estar baseada na regra do consenso. No discurso de Bolsonaro, o presidente argumentou que usar como veto a norma que determina que as decisões do bloco devem ser feitas em consenso gera um ceticismo quanto ao Mercosul. Além disso, ele criticou o período da presidência argentina no bloco.

“O semestre que se encerrou deixou de corresponder às expectativas e necessidades de modernização do Mercosul. Devíamos ter apresentado resultados concretos nos dois temas que mais mobilizam nossos esforços recentes: a revisão da tarifa externa comum e a adoção de flexibilidades para as negociações de acordos comerciais com parceiros externos. O Brasil tem pressa”, disse.

Elaini Silva, doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), argumenta que a visão de Bolsonaro é uma certa tentativa de enfraquecimento do bloco, apesar do discurso de modernização. 

“O que a gente consegue notar é que o governo traz, com esse discurso de modernização como se houvesse um único caminho a ser seguido, uma agenda que está muito associada a essa parte do empresariado brasileiro que é fortemente inserido, ou que tem uma expectativa de inserção, nesse capital transnacional. Essas ações estão muito associadas a esse grupo, não à toa, o grande interlocutor nessa discussão é o Paulo Guedes, com essa agenda de liberalização do comércio internacional”, afirmou.

A professora ainda destaca que essa conduta que o governo brasileiro está apresentando não é excepcional na agenda brasileira. “Essa liberalização unilateral, no Brasil já conhecemos, porque já aconteceu com o governo Collor, no início dos anos 1990. Naquela época, levou ao fechamento de muitas indústrias brasileiras por incapacidade de concorrência com o custo baixíssimo de muita produção estrangeira. Por isso, estamos vendo, dentro do Brasil, que parte do empresariado já está se organizando e já está se manifestando contra essa abertura unilateral”.


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Outra questão que falta consenso entre os membros do bloco é a Tarifa Externa Comum (TEC). Ela estabelece que todos os países membros do Mercosul adotem as mesmas alíquotas de tarifas de importação de produtos de países externos ao bloco. A existência da TEC, desde 1995, é o que faz do Mercosul uma União Aduaneira. A taxa média da alíquota atualmente é de 14%. 

O Brasil sugeriu um corte de 20% em todas as alíquotas da TEC. O Uruguai e o Paraguai concordaram, mas o presidente argentino não quer diminuir a tarifa de todos os produtos. Fernández sugeriu zerar as alíquotas dos bens que fazem parte de cadeias produtivas. No discurso da cúpula, o presidente afirmou que a revisão de tarifas deve "contemplar setores sensíveis".

Elaini afirma que existe uma “discussão eterna” se o Mercosul em algum momento seria efetivamente uma União Aduaneira perfeita. Desde que o bloco foi criado, a TEC teve exceções que eram possibilitadas a cada um dos países do bloco. Isso já era muito questionado, mas agora o grande risco é o de permitir que esses membros tenham outras tarifas com outros parceiros. 

“Essa possibilidade já vinha sendo levantada desde o governo Temer. Hoje temos um diferencial que não houve em outros momentos, que é esse partilhar de posição com o presidente uruguaio e, embora o governo paraguaio tenha se manifestado em silêncio, parte do governo paraguaio também apoia esse tipo de proposta. Na prática, levaria à erosão da tarifa externa comum, ainda mais do que já existe”, afirma.

Se cada país resolver adotar a sua própria alíquota de tarifas externas, o Mercosul volta a ser apenas uma zona de livre comércio. No entanto, segundo a professora, talvez não seja muito provável que alguma mudança ocorra durante a presidência brasileira. “Tem um processo de negociação interno e um processo de negociação do bloco que precisa ser realizado e talvez seis meses seja pouco, em contexto de pandemia e em contexto de renegociação do acordo entre Mercosul e União Europeia, que ainda não terminou”, afirmou.

O professor José Augusto acredita que o bloco tende a ter um acordo de preferência tarifária que sequer chega a ser uma zona de livre comércio. “O fato do Mercosul ser relativamente fraco, de ser uma estrutura que na verdade nunca aportou poder de barganha, oportunidade de um grande crescimento econômico, isso debilita muito o bloco. O fato é que ele serve para algumas coisas importantes e desse ponto de vista, eu não vejo nenhuma vantagem real em estar destruindo esse acordo agora, senão simplesmente uma questão política. Uma questão de agredir, de minar setores que estão ligados à ideia de desenvolvimento nacional, à ideia de industrialização brasileira”, afirmou.


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