Os impactos da inteligência artificial na Propriedade Intelectual

Tema levanta discussões sobre a personalidade jurídica dos agentes que criam uma obra/Pixabay
Tema levanta discussões sobre a personalidade jurídica dos agentes que criam uma obra/Pixabay
Obras criadas por IA têm proteção legal semelhante à realizada para seres humanos?
Fecha de publicación: 04/06/2023

O crescimento da inteligência artificial e a multiplicação de mecanismos que produzem vídeos, textos, vozes e até obras de arte é uma realidade cada vez mais presente no dia a dia dos cidadãos. A previsão dos especialistas é de que os recursos disponíveis aumentem em uma escala nunca antes vista e ofereçam respostas cada vez mais independentes da atuação humana. Para os advogados da área de Propriedade Intelectual, essa mudança de paradigma significa novas oportunidades e desafios, especialmente nas questões de autoria e a propriedade intelectual dos resultados produzidos pelas várias formas de IA. Nesse debate há uma questão ética relevante: quem é o autor quando uma obra é feita por um sistema de IA?

Para começar a entender essa discussão, é bom ficar atento ao que outros países já definiram sobre o tema. Nos Estados Unidos as regras de copyright negam a existência de um autor “não humano”, por exemplo. O sistema jurídico do Reino Unido considera que o direito de obras criadas por sistemas de inteligência artificial pertence à pessoa que fez todos os arranjos necessários para a criação do produto final. Já em Portugal, as obras criadas por IA são consideradas de domínio público.

Diversos países da América Latina estabeleceram grupos de trabalho e iniciaram consultas públicas como parte do processo de elaboração de estratégias nacionais de IA. Apesar dos esforços, nenhum deles conta ainda com uma legislação definida sobre o tema.

É preciso uma reforma jurídica

De acordo com os advogados especializados na área, para que as obras criadas por Inteligência Artificial possam contar com a proteção de propriedade intelectual, é preciso uma reforma jurídica que ofereça proteção legal semelhante à propriedade intelectual nas criações realizadas via IA. A questão é que os desafios são gigantes e esbarram em questões éticas e filosóficas no contexto de máquinas inteligentes, sua autonomia e responsabilidade no caso de transgressões.


Não perca: O que muda com as novas regras para pagamentos de royalties por licenciamento de tecnologia?


No Brasil, a Lei 9279/96, o marco legal da Propriedade Industrial, define que as obras intelectuais protegidas são “criações do espírito” e que o autor deve ser uma pessoa física. Por aqui, a discussão acerca da possibilidade de se considerar um sistema de IA como autor ou titular de direitos exclusivos, sob o ponto de vista da legislação, envolve aspectos não apenas do direito autoral, mas também levanta discussões sobre a personalidade jurídica desses agentes.

“O primeiro desafio é definir como as obras criadas com inteligência artificial serão protegidas. O segundo é definir se a forma de aprendizado pela inteligência artificial representa violação a obras protegidas por direitos autorais existentes nas bases de dados. Temos que tomar cuidado para não adotar soluções simplistas ou que façam muito sentido num primeiro momento, porque elas podem trazer consequências negativas”, analisa advogado Raul Murad, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

“O tema é extremamente desafiador, pois as leis atuais não são mais aderentes à realidade, posto que foram concebidas em uma época em que a inteligência artificial sequer existia. Portanto, a mudança da legislação nos próximos anos é premente, para que sejam estabelecidas novas diretrizes e normas sobre os direitos autorais decorrentes de obras produzidas por Inteligência artificial”, avalia Sofia Rezende, especialista em LGPD e propriedade intelectual do Nelson Wilians Advogados.

Segundo a advogada, será necessário enfrentar outros temas relacionados, como, por exemplo, o fato de que o conteúdo gerado pelos sistemas de inteligência artificial ser derivado da utilização de outros conteúdos que estão na internet, incluindo obras e materiais que podem ser protegidos por direitos autorais.

Atualmente, de acordo com os especialistas, não são claras as implicações de utilização desse conteúdo. Autores e artistas têm expressado suas preocupações com o fato de as ferramentas de inteligência artificial estarem “treinando” em grande quantidade de seus trabalhos e replicando estilos, por exemplo.


Sugestão: Wrexham: Como Ryan Reynolds e Rob McElhenney capitalizam um time da quinta divisão


Por enquanto ainda não há um marco legal que defina regras claras sobre a questão no país. Mas alguns projetos tramitam no Legislativo. A Câmara dos Deputados aprovou em 2021 o Projeto de Lei 21/20, de autoria do deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE), que estabelece fundamentos e princípios para o desenvolvimento e aplicação da inteligência artificial no Brasil.

Uma legislação que estimule o desenvolvimento da IA

O texto, que está em tramitação no Senado, lista diretrizes para o fomento e a atuação do poder público e estabelece que o uso da IA terá como fundamento o respeito aos direitos humanos e aos valores democráticos, a igualdade, a não discriminação, a pluralidade, a livre iniciativa e a privacidade de dados. Além disso, a IA terá como princípio a garantia de transparência sobre o seu uso e funcionamento. A norma é considerada um primeiro esboço para estabelecer uma lei definitiva. Os senadores criaram inclusive uma comissão temporária de juristas para apresentar um anteprojeto mais amplo para regular a inteligência artificial no Brasil.

Bismarck explica que o objetivo é dotar o país de uma legislação que estimule o desenvolvimento da IA, mas que proteja os cidadãos do mau uso dela. “Precisamos de uma edição de legislação tornando obrigatórios os princípios consagrados no âmbito internacional e disciplinando direitos e deveres”.

Outra norma importante, publicada pelo governo federal em abril de 2021, é a Estratégia Brasileira para Inteligência Artificial (EBIA). O conjunto de diretrizes quer contribuir para a elaboração de princípios éticos para o desenvolvimento e uso de IA responsáveis. O plano inclui cinco eixos estratégicos, entre eles promover investimentos sustentados em pesquisa e desenvolvimento em IA, remover barreiras à inovação na área e capacitar e formar profissionais para o ecossistema da IA.

A proposta também quer estimular a inovação e o desenvolvimento da inteligência artificial brasileira em ambiente internacional e promover a cooperação entre os entes públicos e privados, a indústria e os centros de pesquisas para o desenvolvimento da inteligência artificial.

A estratégia estabelece ainda um diagnóstico da situação atual da IA no mundo e no Brasil, destaca os desafios a serem enfrentados, oferece uma visão de futuro e apresenta um conjunto de ações estratégicas para os próximos anos.


Leia também: As marcas de posição no mercado brasileiro e sua importância para a PI


Segundo os advogados da área, o acelerado desenvolvimento da IA e tecnologias disruptivas relacionadas, como ChatGPT (OpenIA) e Bard (Google), impõem ao legislador o desafio de regular essa nova realidade imediatamente. “Uma possibilidade aventada seria criar um novo instituto aplicável à IA dentro do direito de propriedade intelectual, fazendo um paralelo com o conceito de 'obras intelectuais' e de 'autor' do direito autoral tradicional, consistente em um 'produto de IA' e em um 'titular dos direitos sobre o produto de IA'. Nessa lógica hipotética, o usuário de determinada ferramenta de IA se tornaria titular de direitos sobre o produto, podendo explorá-lo nos termos da lei”, analisa Yuri Nabeshima, advogada e head da área de Inovação do VBD Advogados.

O desafio de regular essa nova realidade

Alguns especialistas defendem que se houver uma atividade intelectual humana, criativa, determinante para o resultado, mesmo que a ferramenta seja uma IA, então deve haver proteção.

“É preciso ter mudanças de conceitos daquilo que protegeríamos como obra. Entender o quanto um humano colaborou naquela criação ou se simplesmente colocou um inputs genéricos. Então, não são mais só aquelas pessoas que têm um grande talento, uma grande capacidade. Temos de levar em consideração as pessoas que possam dar boas instruções e que colaborem efetivamente com a máquina”, afirma Vanessa Ribeiro, especialista em Direito e Propriedade Intelectual do escritório Gusmão & Labruine.

"A ferramenta tem um operador, alguém que lhe dá comandos. E esses comandos determinam o resultado da atividade. Então, se a atuação do espírito humano determina, em alguma medida, o resultado da operação da ferramenta de IA, então é possível reconhecer a proteção autoral", diz Saulo Stefanone Alle, especialista em especialista em Direito Público e Regulatório do Peixoto e Cury Advogados.

O advogado propõe um exercício de comparação. Um artista derrama várias cores de tintas no dorso do seu cão. E o coloca para brincar e rolar livremente sobre telas em branco. A atividade foi determinada pelo artista, mas quem executou foi o cão. O titular da obra, neste caso, seria o artista, que agiu de maneira determinante para o resultado.

"Assim, se há um resultado relevante do ponto de vista de criação, determinado pelos comandos dados à IA por uma pessoa, então é possível defender que, ainda que utilizando ferramenta tecnológica e avançada, o resultado decorre em alguma medida de criação humana e, portanto, sujeita a proteção", avalia Alle.


Veia também: A proteção do trade dress no ordenamento jurídico brasileiro


Outra questão importante, na análise dos advogados, é fazer a distinção de dois tipos de IA: a de insights e a generativa. A primeira chega a respostas ou insights a partir da análise de um volume importante de dados e o treinamento de seus algoritmos para predição. A segunda produz novo conteúdo a partir de dados de treinamento anteriores, como é o caso do Chat-GPT e do MidJourney.

A questão da titularidade dos direitos autorais tem que passar pela uma série de avaliações

Para Gustavo Artese, especialista em proteção de dados e regulação digital, a questão da titularidade dos direitos autorais tem que passar pela discussão desses dois tipos de IA. “Há conteúdo novo e original gerado pela máquina, mas ele depende do prompt do humano. É, sem dúvida, um trabalho colaborativo. A partir dessa premissa teremos que fazer uma série de avaliações a respeito de fair use, obra derivada, direitos morais. Entendo que o tema mereça tratamento jurídico sui generis, tendo em vista que a situação de geração semi-automatizada de conteúdo não tem precedentes históricos", diz.

O caso do ChatGPT, por exemplo, pode ser um paradigma importante. É fato que a tecnologia utiliza conteúdo de domínio público na internet e muitas vezes é capaz de citar a fonte. Mas outras vezes isso não acontece. De acordo com os advogados de Propriedade Intelectual, isto não poderia torná-lo autor de determinado conteúdo por simplesmente assimilar trechos extraídos da internet de forma automatizada.

"A questão da personalidade jurídica influencia significativamente neste ponto e aponta para a necessidade de que a IA, talvez, tenha uma personalidade jurídica própria, assim como a pessoa jurídica, a pessoa física, e agora a pessoa IA" analisa Micaela Ribeiro, advogada da área de direito digital e proteção de dados do Medina Guimarães Advogados.

A advogada defende que é necessário um pouco mais de tempo para assimilar as questões tecnológicas e a aplicação na norma jurídica brasileira, bem como a necessidade de complementação com legislação específica sobre o tema.

É certo que essa discussão ainda vai longe e há uma série de questionamentos que precisam ser discutidos e debatidos. “Em Propriedade Intelectual acho que é pensar: vale a pena essa proteção? O que estamos ganhando e perdendo com isso? Do ponto de vista de violação o mesmo raciocínio. Quais são os limites que vamos colocar para o uso da IA? Para que? O que seria um uso livre, o que não é o uso livre? Eu posso alimentar essas bases de dados que alimentam as inteligências artificiais de forma livre? Terei que criar catálogos e dar transparência? Então esses vão ser desafios cada vez mais e mais recorrentes e constantes. Sobretudo porque é uma caixa de Pandora. Cada vez que você toca no problema, haverá outras repercussões do ponto de vista jurídico ou social”, destaca Vanessa Ribeiro.

“As pessoas vão recorrer à inteligência artificial para produzir música, para produzir audiovisual, para produzir imagens, pode ser que o mercado acabe se reinventando e faça com que obras feitas por seres humanos sejam obras que tenham um apelo maior”, afirma Raul Murad.

“O tema é complexo e instigante, constitui apenas um pequeno vislumbre dos infinitos desdobramentos jurídicos provocados pelo desenvolvimento da IA. Para que possamos avançar na regulação da matéria, de maneira sustentável, responsável e ética, é imprescindível a realização de debates públicos com a participação de especialistas da área de tecnologia, juristas com conhecimento técnico aprofundado no assunto, representantes de plataformas de inteligência artificial e sociedade em geral", diz Yuri Nabeshima.

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.