Os impactos jurídicos da crise política entre Moro e Bolsonaro

Posse de Moro como ministro da Justiça. 1.jan.19/Presidência da República.
Posse de Moro como ministro da Justiça. 1.jan.19/Presidência da República.
Especialistas e analistas de Direito Constitucional acreditam que ainda não há elementos para um processo de impeachment do presidente; é preciso provas mais contundentes.
Fecha de publicación: 27/04/2020
Etiquetas: Brasil

Os bastidores do poder estão agitados nos últimos dias com a movimentação política e jurídica. A possibilidade de impeachment do presidente Jair Bolsonaro aumentou em plena crise da Covid-19, mas, por enquanto, não há provas concretas. É o que dizem especialistas ouvidos por LexLatin.

Com isso, as manchetes sobre o coronavírus deram espaço a mais uma crise, a maior do polêmico mandato de Jair Bolsonaro até agora. Dessa vez, com o novo desafeto, o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Diferentemente de outros embates, a briga dá sinais de estar apenas no começo.

Moro deixou o governo na última sexta-feira (24) depois que o presidente exonerou o diretor-geral da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo. O anúncio teria sido feito à revelia do ministro, que ficou sabendo da notícia pelos jornais. E as acusações, do agora ex-ministro, de que a pressão pela saída de Valeixo acontece desde o ano passado.

A intenção, segundo Moro, era colocar alguém a quem o presidente “pudesse ligar para colher informações” sobre investigações.

“Presidente me disse mais de uma vez que ele queria ter uma pessoa do contato pessoal dele [na Polícia Federal], que ele pudesse ligar, colher relatórios de inteligência. Realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser preservadas. A autonomia da Polícia Federal como um respeito à autonomia da aplicação da lei, seja a quem for isso, é um valor fundamental que temos que preservar no estado de direito”.

Moro deu a entender que a intenção do presidente era ter acesso a informações privilegiadas sobre aliados políticos e os filhos, que são alvo de investigações. No mesmo dia que saiu divulgou ao Jornal Nacional da Rede Globo o print de duas supostas conversas com feitas por whatsapp: uma com o presidente e outra com a deputada Carla Zambelli (PSL), uma das principais aliadas de Bolsonaro.

Conversa atribuída ao presidente

Na primeira conversa, o presidente compartilha uma notícia do site O Antagonista, de 22 de abril, que tem o título “PF na cola de 10 a 12 deputados bolsonaristas”. A reportagem fala da investigação sobre a participação de deputados nas manifestações que pediram o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF) em 19 de abril. Logo em seguida, vem um comentário do presidente: “Mais um motivo para troca”.  

A resposta de Moro é que o inquérito estaria sendo conduzido pelo ministro do STF, Alexandre de Morais, e não pela PF, que na época era dirigida por Valeixo.

Em outra mensagem, trocada com a Deputada Carla Zambelli, haveria indícios de pressão feita por aliados do governo, para que Moro aceitasse a troca de Valeixo por uma indicação ao STF em setembro.

Zambelli teria dito na conversa: “Por favor, ministro, aceite o Ramage. E vá em setembro pro STF. Eu me comprometo a ajudar. A fazer JB [Jair Bolsonaro] prometer”.

Conversa atribuída a Zambelli

Ramage seria o diretor geral da Agência Brasileira de Inteligência, Alexandre Ramagem, que está cotado para substituir Valeixo na PF. Ele é amigo pessoal de Carlos Bolsonaro, um dos filhos do presidente, que estaria sendo investigado, sob acusações de liderar um esquema de fake news.

Em resposta, Moro responde: “Prezada, não estou à venda”. Em seu discurso de saída do ministério Moro completou. “Eu, infelizmente, não tenho como persistir com o compromisso que assumi sem que eu tenha condições de trabalhar, sem que eu tenha condições de preservar a autonomia da Polícia Federal para realizar seus trabalhos".

Horas depois da saída o presidente defendeu-se das acusações em um pronunciamento.

"Eu não tenho que pedir autorização para ninguém para trocar o diretor [da Polícia Federal] ou qualquer outro que esteja na hierarquia do poder executivo. É interferir na PF pedir a Sergio Moro que apure quem mandou matar Jair Bolsonaro? (...) Esperava, junto com o ministro, definir um nome para a instituição, ainda que pela lei essa seja uma prerrogativa exclusiva do presidente da república. Estou surpreso com o seu comportamento. Não se dignou a me procurar e preferiu uma coletiva de imprensa."

Diferentemente de outros aliados de primeira hora e depois adversários políticos de Bolsonaro, Moro tem vasta experiência em lidar com o poder. Foi ele quem levou o ex-presidente Lula à cadeia e foi um dos principais juízes da Operação Lava Jato.

As mensagens divulgadas pelo ex-ministro são vistas pelo mundo político e jurídico como o começo de uma guerra, entre as duas maiores figuras políticas do último ano no Brasil.

O caso será investigado pelo STF e pode ser um dos vários argumentos para um processo de impeachment, possibilidade que aumentou bastante, segundo especialistas.

Para o cientista político Rodrigo Brando, professor de sociologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o governo Bolsonaro tinha, até então, dois pilares de sustentação.

“De um lado Moro, simbolizando o combate à corrupção, representando a força da operação Lava Jato, que simbolicamente era importante para o recém eleito; e de outro lado, o liberalismo econômico, representado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. E na última semana um dos pilares caiu com a saída do Moro”, afirma.

O cientista acredita que Bolsonaro tem uma dificuldade enorme em entender o que é liderança e chefia.

“Politicamente o líder dialoga, discute, constrói consensos, aponta caminhos e segue junto. Ele tem uma capacidade técnica, moral, de apontar caminhos e levar as pessoas junto com ele. Ao passo que chefe é o que manda e tem obediência pelo medo. Então o chefe sempre precisa de cargo, para poder exercer seu poder de mando”, analisa.

“Todos aqueles que apresentam um empecilho ao projeto de poder do presidente acabam incomodando muito a Bolsonaro e seus aliados. E isso aconteceu com Moro. Moro, em termos de capital político, tem uma respeitabilidade maior que a do próprio presidente, como a que aconteceu recentemente com o ex-ministro Mandetta [da Saúde], que manejava a pandemia com respeito da população e confiança e não o presidente”, diz.

Segundo o cientista, esse dois episódios mostram como Bolsonaro estava distanciado da liderança, e, por isso, outras figuras ganharam o protagonismo. “Moro já tinha sido esvaziado e submetido a humilhações públicas”, afirma. “Na saída o ex-ministro não deu um tiro, disparou um míssil mandado diretamente no colo do presidente. Ele jogou nas mãos de Bolsonaro pelo menos uns sete ou oito crimes”, avalia.

Para o advogado Walfrido Warde, presidente do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (Iree) e sócio do Warde advogados, o presidente sabe exatamente o que está fazendo. “Bolsonaro não é idiota, não é à toa que ele teve a capacidade de se eleger presidente da República. Isso tem relação com o jogo de sobrevivência política, o que o grupo dele sabe fazer”.

O especialista em análise política acredita que a crise, que num primeiro momento desestabiliza o Planalto, vai aproximar governo e parlamento nas próximas semanas. “Acho que essa semana pode ser firmada uma aliança entre Maia, Alcolumbre e o centrão [conjunto de partidos políticos que não possuem uma orientação ideológica específica e têm como objetivo assegurar uma proximidade ao Executivo]. É como funciona a política. O governo não manda sozinho, será preciso haver uma composição democrática”, analisa.

É bom lembrar que tanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quanto o do Senado, Davi Alcolumbre, ainda não se pronunciaram a respeito. E mantiveram silêncio durante o fim de semana, até a publicação dessa reportagem.

Warde também acredita que o ministro da Economia, Paulo Guedes, deverá ser o próximo a deixar o governo. “Ele deve ser substituído por alguém que o mercado veja com bons olhos. Nesse momento, de pandemia, os empresários não precisam de um ministro da economia liberal. Precisam de alguém que intervenha, que ajude no fluxo de caixa e que minimize os riscos da crise”, afirma.

Warde, em sua analise, diz que o jogo da política está em curso na pandemia, numa espécie de pôquer macabro. “O governo aposta nos efeitos da fome. Os adversários no aumento do número de mortes. É um jogo em que o governo quer que os efeitos econômicos sejam superiores aos sanitários. Por isso, não aplica a testagem em massa da população”.

Implicações jurídicas da briga Moro x Bolsonaro

A reportagem de LexLatin ouviu dois advogados especialistas em Direito Constitucional para avaliar, com as provas apresentadas até agora, a possibilidade real de um impeachment contra Bolsonaro em plena crise causada pela pandemia.

Para Erival Oliveira, professor de Direito Constitucional do Damásio Educacional, há gravidade nas acusações. Para ele, há indícios do ponto de vista comum, uma possível prevaricação administrativa. Do ponto de vista do crime de responsabilidade, em tese, há a possibilidade de se dar o início de um processo de impeachment.

“Se ficar o disse que me disse, isso não vai para frente. Se não tiver mobilização na rua, o impeachment não acontece, sob o ponto de vista do crime de responsabilidade. Sob o ponto de vista do crime comum, a investigação já está encaminhada pela Procuradoria Geral da República (PGR) e vai instaurar o inquérito para ter continuidade na esfera comum”, diz.

Neste último caso, a investigação é feita pela PF, o que pode culminar numa denúncia. Se houver autorização na Câmara dos Deputados, poderá começar o julgamento no STF.

Na história brasileira as denúncias por crime de responsabilidade aconteceram em todos os governos desde a década de 1990. “Não foi para frente com Lula, FHC e Temer, mas aconteceu com Collor e Dilma”, analisa Oliveira. “Mas, por enquanto, esse processo é só conjectura. Se não tiver dado concreto não vai pra frente”.

No país, os artigos 52 e 85 da Constituição e a lei 1079, de 1950, estabelecem os crimes de responsabilidade e processos de impedimento. Um processo que, se instaurado, pode demorar meses e se arrastar junto com a pandemia.

Para Clever Vasconcelos, promotor de Justiça e professor de Direito Eleitoral, a insatisfação do presidente em relação aos processos contra parlamentares da base aliada, por si só, não confere material para a instalação de um processo de impeachment.

“Ali demonstra só uma insatisfação. Precisa verificar concretamente, em outras mensagens, se ele pede para o então ministro Moro interferir. Até agora não há embasamento para instauração de processo de impedimento”.

Tudo agora fica por conta de outras informações que podem ser reveladas nessa semana. “O presidente pode trocar o chefe da PF independentemente da vontade do ministro da Justiça. Juridicamente não há o que falar”, afirma Vasconcelos.

Erival Oliveira também diz que as mensagens apresentadas por Moro até agora não têm poder de condenar, somente para absolver. “São conversas privadas. Se Moro for acusado de alguma coisa para se defender, pode apresentar esses prints de tela. Como acusação não, só se tivesse uma autorização judicial anterior”, avalia.

Outra questão é se houve ou não interferência na investigação. “Se tivesse um print de tela dizendo assim: pare a investigação contra o meu filho, aí é um indício”.

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