Para contribuintes, nova portaria sobre voto de qualidade é ilegal

Decisão do Ministério da Economia regulamenta proclamação de resultados no Carf em caso de empate nas votações/ Gustavo Raniere/Ascom/Ministério da Economia
Decisão do Ministério da Economia regulamenta proclamação de resultados no Carf em caso de empate nas votações/ Gustavo Raniere/Ascom/Ministério da Economia
Ao regulamentar a decisão pró-contribuinte, texto ministerial extrapolaria funções. STF julgará mérito da questão no plenário.
Fecha de publicación: 07/07/2020
Etiquetas: Carf

A decisão do Ministério da Economia de regulamentar a proclamação de resultados no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) em caso de empate nas votações traz um novo capítulo na longa história do voto de qualidade dentro do tribunal administrativo. Mas, desta vez, a decisão do Executivo não foi vista com bons olhos por conselheiros, ex-conselheiros e tributaristas que tem casos no tribunal.

O texto da Portaria nº 260, publicado na última sexta-feira (3), aponta as hipóteses onde, em caso de empate, o resultado do julgamento será favorável ao contribuinte. O dispositivo é utilizado apenas quando há determinação e exigência do crédito tributário, seja por meio de auto de infração ou de notificação de lançamento. 

A portaria também prevê três eventos onde não há a possibilidade de voto de qualidade pró-contribuintes: nos casos onde há julgamentos de natureza processual ou conversão do caso em diligência; em embargos de declaração ou em qualquer outro tipo de processo a ser julgado pelo Carf.

Esta resolução, assinada por Paulo Guedes, vem quase três meses depois de o próprio Congresso Nacional ter definido o fim do voto de qualidade. A determinação veio durante a conversão da Medida Provisória 899, sobre a resolução de litígios entre contribuintes e a Fazenda Pública, na Lei 13.988.

O ministro, no entanto, teria decidido em sentido contrário. "Os debates feitos durante a votação da MP 899 expressaram uma vontade evidente do legislador em diminuir o número de litígios. Foi visando isso que o legislador alterou a legislação de 1976. É uma resposta negativa, porque vai contra a essência da lei", disse a tributarista Mirian Lavocat, sócia da Lavocat Advogados.

A medida foi considerada surpreendente pelo tributarista Bruno Teixeira, do TozziniFreire Advogados. "Apesar da crítica que tenho em relação à interpretação restritiva [de alguns julgadores do Carf], é uma competência deles esta ação", afirmou. Teixeira afirma, porém, que há um excesso do Executivo ao tirar espaço do colegial para interpretar a norma. "O ministro regulamentou uma questão de interpretação de norma, algo que nem poderia ter sido feito por ele."

Críticas e ilegalidades

Um conselheiro, representante dos contribuintes em um dos colegiados do Carf, analisou a proposta da portaria de maneira reservada – já que ele deverá, tão breve quanto em sua próxima sessão, enfrentar situações de aplicação da resolução ministerial. A portaria foi classificada como "extremamente ilegal".

"A portaria excede muito o que deve ser uma portaria", comenta o conselheiro. Como exemplo, cita a impossibilidade de aplicação dos dispositivos a casos de embargos. "Não estamos falando de ato que cria norma. E a norma, que é a lei, não traz essa previsão. E embargos de declaração tem caráter integrativo – logo, o novo acórdão complementa e substitui o primeiro acórdão. Eles sim sofrem os efeitos da regra nova."

Na visão deste julgador, outro exemplo problemático da norma é o fato do voto de qualidade pró-contribuinte não valer ao responsável solidário – em sua visão, a medida altamente questionável estaria quase em contrariedade ao Código Tributário Nacional (CTN), principal legislação sobre o tema. "Quando falamos em determinação e exigência do crédito tributário, temos um problema sério quando se excluem coisas, como, por exemplo, quando o processo trata de exclusão do Simples Nacional, ou de normas anti-dumping." 

Outro ponto negativo seria a tentativa da portaria de transformar a proclamação do resultado como uma decisão monocrática do presidente – quando, na verdade, há uma decisão do colegiado como um todo, que pode contestar o conteúdo do resultado. "Tanto que geram embargos de declaração por contradição quando temos um julgamento cujas razões de decidir estão em dissonância com o resultado na ata."

As críticas também vieram da própria advocacia. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CF/OAB) afirmou que a medida, por mais que corrija o que chamou de "distorções históricas", poderia incorrer em ilegalidades na norma infralegal.

"Nesse contexto, ao limitar a aplicação do artigo 19-E às hipóteses em que indica, a Portaria 260 incorre em violação ao princípio da legalidade, pois invade seara já regulada por lei, reduzindo sua aplicação no âmbito do Carf", afirmaram o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, e o Presidente da Comissão de Direito Tributário, Eduardo Maneira em nota. "A interpretação explicitada pela portaria, portanto, minimiza os efeitos pretendidos pela regra legal que diz aplicar, em oposição às regras de hermenêutica e em desconsideração à opção democrática feita pelo Congresso Nacional, com a posterior sanção do presidente da República." 

A medida, ao incorrer em abuso de interpretação, elevará a litigiosidade, apontam os membros da OAB. O conselheiro do Carf, ouvido de maneira reservada, concorda com a interpretação. "Teremos uma judicialização muito grande a partir de agora por conta de uma atitude mais impensada do poder Executivo. O ministro da Economia exorbitou a competência do Poder Executivo quando editou a normativa."

"Quer nos parecer que essa portaria do ministro da Economia é uma espécie de tapetão para manter parcialmente o voto de qualidade que havia sido extinto pela lei aprovada pelo Congresso Nacional, provavelmente para acalmar ânimos dentro da Receita Federal do Brasil", afirma o sócio do contencioso tributário do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados, Bruno Aguiar. "Só restará aos contribuintes socorrer ao Poder Judiciário para afastar os abusos dessa portaria".

Na Suprema Corte

Há ainda uma possibilidade de que o entendimento sobre o voto de qualidade pró-contribuinte seja revertido pelo plenário do STF. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.415 questiona a Lei 13.988, que instituiu o voto de desempate pró-contribuinte. 

A ação, com relatoria do ministro Marco Aurélio, é movida por auditores da Receita Federal, para quem o texto fere o princípio democrático e ao devido processo legislativo ao não ter conexão com sua medida provisória original. "Em nenhum dispositivo, porém, a Medida Provisória nº 899/19 tratou do funcionamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e, tampouco, do critério de desempate dos julgamentos por ele realizados", aponta o autor da petição inicial, o advogado e professor Heleno Taveira Torres.

Advogados, entretanto, consideram difícil que a corte se curve a este entendimento. "Primeiro que não há vício de forma – é uma emenda parlamentar inserida no meio de uma norma sobre direito tributário. Não há problema nenhum", comenta Bruno Teixeira, do TozziniFreire.

"O relator, ministro Marco Aurélio, não levou a medida cautelar para julgamento imediato no plenário. E isso é um sinal muito bom, porque teremos um período para que as informações estejam muito maduras para analisar diretamente o mérito da questão", lembra Mirian Lavocat.

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.