Uma comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou, nesta semana, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 39/2021, que impõe uma espécie de filtro para recursos especiais a serem julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A norma, que aguarda agora a análise do Plenário da Casa, muda a Constituição para determinar que, no recurso especial, o interessado deve demonstrar a relevância das questões de direito infraconstitucional para que o STJ analise sua admissibilidade. Caso contrário, a Corte pode não conhecer o recurso especial, se houver concordância de dois terços dos membros dos órgãos responsáveis pelo julgamento.
A medida, caso aprovada, pode funcionar de forma parecida ao que é feito em julgamentos de admissibilidade em recursos extraordinários encaminhados ao Supremo Tribunal Federal (STF). Por lá, é preciso comprovar a chamada repercussão geral do tema constitucional. A discussão não é nova no Congresso Nacional e tramita desde 2012. Depois de quase dez anos, ela finalmente pode ir ao Plenário da Câmara.
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A proposta muda a Constituição e estabelece relevância em ações penais, de improbidade administrativa, em casos em que o valor de causa supere 500 salários mínimos e em ações que possam gerar inelegibilidade e em hipóteses em que tribunais de primeira e segunda instância contrariem jurisprudência do STJ.
"A aprovação da PEC contribui para a missão do tribunal e para todo o sistema de Justiça, pois possibilita ao STJ exercer de forma mais efetiva o seu verdadeiro papel de firmar teses jurídicas para uniformizar a aplicação das leis federais", afirma o presidente do STJ, ministro Humberto Martins.
Um dos motivos, segundo o ministro, para a aprovação do projeto é o número de recursos enviados ao STJ: foram mais de 400 mil no ano passado. "Muitos afetam apenas os interesses das partes, sem maior impacto na uniformização da jurisprudência", diz.
Muitos desses recursos, na avaliação do ministro, poderiam ser resolvidos nos tribunais estaduais e regionais federais.
Mas, para advogados, há o risco de perda de direitos e garantias fundamentais.
Para Miriam Shikanai Massunari, sócia da área de contencioso cível estratégico do escritório Nelson Wilians Advogados, é importante garantir a qualidade das decisões do STJ e assegurar que a Corte atue como um tribunal excepcional, não apenas como uma terceira instância. Só que a PEC 39/2021 pode acabar funcionando como mais um obstáculo, diz ela.
“A proposta, tal como posta, acaba sendo apenas mais um obstáculo para aqueles que precisam se socorrer às vias extraordinárias, diante de decisões incoerentes que afrontam não apenas a legislação infraconstitucional, mas a própria jurisprudência do STJ. A segurança jurídica, a coerência e o bom funcionamento do sistema judicial não dependem da imposição de mais um requisito a ser observado por aqueles que se socorrem ao Judiciário. A questão está na necessidade de observância uniforme da legislação infraconstitucional e da jurisprudência da Corte Superior pelos tribunais estaduais e federais”, avalia.
Lenio Luiz Streck, professor de Direito Constitucional e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados, explica que a PEC trata de um problema funcional, mas ignora os problemas estruturais.
“Será que a única ideia para lidar com os problemas do Judiciário é sacrificar direitos e garantias fundamentais dos cidadãos? Afinal, a solução encontrada por meio da PEC é a supressão de direitos em nome da eficiência”, afirma.
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Para o especialista, em um país como o Brasil, isso é um risco, porque há, desde o juiz de primeiro grau até alguns ministros do STF, a ideia de eficiência em detrimento do réu.
“Um caso recente: o juiz recebeu a denúncia e marcou audiência de instrução antes da resposta à acusação. Justificou em nome da eficiência e da razoável duração do processo. Para isso, sacrificou o contraditório e a presunção de inocência. Ou seja, é explícito: a defesa do réu é mera formalidade. Com mais essa barreira para ingressar processualmente no STJ, a interposição de recurso especial também o será.”
Georges Abboud, professor da PUC-SP e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e sócio do Warde Advogados, acredita que a PEC busca estabelecer um filtro constitucional para maior seletividade de recursos para o STJ e até pode ser um avanço para a racionalização dos recursos no STJ se for acompanhada de dois pontos fundamentais.
“O primeiro é uma regulamentação legislativa eficiente e clara. Já o segundo ponto é uma compreensão hermenêutica adequada por parte do STJ de modo a produzir uma jurisprudência íntegra e coerente a respeito dessa nova sistemática de admissibilidade. É crucial que a nova PEC sirva para racionalizar a jurisprudência de modo a diminuir recursos mas, ao mesmo tempo, diminuir a discricionariedade judicial acerca do juízo de admissibilidade”, analisa.
Outra questão, que é um dos argumentos mais fortes da aprovação da proposta, é a redução da quantidade de processos, algo que também é questionado pelos advogados.
“A PEC não soluciona o problema do grande volume de processos na primeira e segunda instâncias e ainda dificulta o andamento dos recursos no STJ, na medida em que este último ainda terá de fazer a análise da relevância da matéria por dois terços dos integrantes do colegiado competente, antes de inadmitir o recurso. A PEC, caso aprovada, possivelmente terá os mesmos efeitos do art. 1.015 do CPC, que introduziu um rol de matérias objeto de agravo, mas não impediu a interposição de recursos sobre outras matérias, nem a adoção de medidas alternativas, como mandados de segurança e pedidos de tutela cautelar”, avalia Gabriela Lotufo, sócia da área de Resolução de Disputas do BBL Advogados.
Os advogados defendem que o aprimoramento do sistema processual exige reflexões e sempre acarretará mudanças. Um exemplo é o Código de Processo Civil, de 2015, que trouxe avanços no campo do recurso especial e da eficiência dos tribunais. O problema é que uma medida mais restritiva por alteração constitucional pode ser algo agudo e rígido demais.
“Se ela se provar inadequada, o espaço para correções será muito limitado”, avalia Saulo Stefanone Alle, do Peixoto & Cury Advogados.
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