Qual o espaço da diversidade no universo jurídico brasileiro?

As distâncias estão diminuindo nos últimos anos/Pixabay
As distâncias estão diminuindo nos últimos anos/Pixabay
Preconceito de raça, gênero e orientação sexual ainda existe, mas as distâncias estão diminuindo nos últimos anos com a discussão destes temas, o que ajuda a combater a discriminação.
Fecha de publicación: 09/11/2020

No dia a dia da profissão e na prática do direito elas já são quase metade do número de advogados no país. Prova disso são os dados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB): do universo de 1.185.000 profissionais do setor, 588 mil são mulheres.  

Há 122 anos o Brasil tinha a primeira mulher a exercer a advocacia da sua história: a fluminense Myrtes Gomes de Campos, em 1898. Mas por causa da discriminação da época ela só conseguiu entrar no quadro de sócios efetivos do Instituto dos Advogados do Brasil, entidade que existia antes da OAB, em 1906.

Pouco mais de um século depois o mundo legal evoluiu – e muito – mas o machismo ainda está bem presente.

Quando começou na carreira jurídica Maís Moreno, sócia do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados chegou a passar por situações constrangedoras em reuniões com outros colegas.

“Imagina ser chamada para participar de uma reunião só com homens e depois seu superior hierárquico perguntar qual homem te agrada mais, porque todos ali teriam se sentido super agradados com a sua presença e tentavam uma aproximação”, conta a advogada.

Isso foi no começo da carreira, num outro escritório e numa outra época, em que as questões de gênero e de diversidade ainda eram pouco discutidas no mercado jurídico.

“Era muito duro e revoltante, você tinha uma sensação de impotência muito grande, porque essas situações não são de fácil enfrentamento quando você é uma jovem advogada numa época onde não havia nenhum compromisso com equidade de gênero”, afirma.

No dia a dia de muitas advogadas, esse tipo de assédio não é um caso isolado, é algo do presente e não parte só dos colegas de trabalho, mas muitas vezes de clientes. Por conta disso, e para acabar com estas práticas, muitos escritórios estão criando comitês especiais de defesa dos direitos delas e da diversidade.

Em 2016, Maís Moreno ajudou a criar o Comitê Manesco Mulher, que discute atos discriminatórios que até então passavam despercebidos ou eram naturalizados, entendidos como algo normal pelo fato da profissional ser mulher.

“Na advocacia nós dependemos de network e desenvolvimento de uma carteira de clientes. Dependemos das nossas relações pessoais e é mais difícil desenvolver isso sendo mulher. Os homens brancos não estão só no topo da cadeia do direito, eles estão no topo de todas as cadeias praticamente”, diz.

“Para as mulheres se aproximarem desses potenciais clientes homens é sempre mais complicado. Um convite para um happy hour ou almoço pode ser muito mal interpretado, ainda que você queira só fazer network. Essas pequenas nuances do machismo nosso de cada dia dificultam”, analisa Maís.

Além da questão do assédio, no dia a dia da profissão - explicam as advogadas - é muito comum encontrar problemas como a interrupção da fala da mulher (o man interrupting),  homens tentando explicar o que a mulher está querendo dizer e homens se apropriando de ideias que as mulheres tiveram.

Para debater essas e outras questões a maioria dos escritórios brasileiros criaram esses comitês, como o D Mulheres, do Demarest Advogados, que trabalha com uma escuta ativa de todas as mulheres de todos os níveis hierárquicos e também do próprio corpo administrativo.

“Ele é muito importante porque as mulheres conseguem se abrir com outras mulheres e conseguimos traduzir isso em ações efetivas para que a agenda avance”, afirma Sarah Gil, especialista em comunicação e responsabilidade social corporativa do Demarest.

Para Marcia Cicarelli, líder do D Mulheres e sócia de seguros e resseguros, hoje o machismo não é explícito, mas é visto no dia a dia na forma como a mulher é percebida.

“Muitas vezes se associa à mulher com a questão de aparência física. Uma série de vieses inconscientes que fazem com que você não perceba a mulher da mesma forma que percebe um homem. É preciso que as mulheres se assenhorem das suas qualidades, das suas forças e usem isso a seu favor. Daí a importância de ter líderes mulheres para ter esse modelo”.


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Uma dessas líderes no mercado brasileiro é Maria Cristina Cescon, sócia-fundadora do Cescon Barrieu. “Atingir o topo da pirâmide depende de vários fatores. Uma das premissas para o sucesso profissional é tratar a carreira como prioridade, ao menos em pé de igualdade com outros pilares da vida (família e outros poucos). Homens de sucesso parecem assumir essa prioridade com naturalidade. Deve ser natural para nós mulheres também, sem culpa”, afirma.

Para as advogadas, a mulheres ainda estão associadas pelos homens como muito emotivas, assertivas, ou agressivas.

“É muito importante trazer os homens para a mesa de discussão. Não pode ficar só entre nós. Eles precisam entender qual é o problema para compreenderem quais são os desafios e barreiras e possam ser nossos parceiros”, explica Luciana Tornovsky, head de D&I e sócia de M&A do Demarest.

“As mulheres estão prontas e querem assumir mais posições de destaque nos escritórios de advocacia, assim como em outras profissões. No entanto, apesar dos avanços, é um caminho lento e precisamos de mais iniciativas e oportunidades para que elas possam alcançar tais cargos de destaque. Cabe a nós, que estamos nessas posições hoje, auxiliar e abrir caminhos de mudanças fomentando iniciativas e ações de diversidade e inclusão”, afirma Simone Dias Musa, sócia e membro do comitê administrativo do escritório Trench Rossi Watanabe.

O escritório tem o MOVE, Comitê de Diversidade e Inclusão, com cinco grupos de afinidade (etnias, gênero, religião, PCD, LGBTQI+). Os integrantes se manifestam com textos, artigos e sugestões de ações afirmativas em torno de diversidade e inclusão.

A questão LGBT no mundo jurídico

Para as mulheres lésbicas, a questão é um pouco mais complicada, porque existe a dupla discriminação a partir do gênero e da orientação sexual. É o que explica Marina Ganzarolli, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB de São Paulo.

“Tem essa mulher lésbica a mesma abertura para comentar do final de semana dela com a esposa que os colegas heterossexuais? O maior gargalo para as mulheres lésbicas no mundo jurídico está na ascensão”, avalia.

Para a advogada, a situação fica pior quando se fala de mulheres trans. “Ela vai conseguir utilizar o banheiro da empresa? Todos estão sensibilizados para a questão da identidade de gênero?”, questiona.

Segundo a advogada, é preciso visibilizar a questão para que ela seja encarada de forma natural. “As mulheres lésbicas e trans muitas vezes não estão representadas nos lugares jurídicos ou corporativos”, diz.

Em São Paulo, a Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB existe há nove anos. Hoje, há algumas frentes de trabalho por lá: a questão acadêmica, advocace junto aos poderes e diálogos com outras fontes para garantir o direito à proteção da diversidade sexual e de gênero.

Com relação aos homens que se assumem gays, a dificuldade pode ser ainda maior. Felipe Caon, sócio do escritório Serur Advogados, explica que a diversidade, além de ser uma questão ética importante, pode ser um excelente negócio, tanto para os empregados, quanto para a empresa de advocacia.

Entre os 11 sócios da firma ele é o coordenador da Comitê Serur+ Diversidade, que discute a inclusão e os direitos das pessoas LGBTQIA+.

Entre os temas analisados, está a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de enquadrar a homofobia e a transfobia como crime de racismo. O julgamento aconteceu em junho de 2019 e o STF entendeu que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia. Os ministros votaram pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria.

O Comitê Serur+ Diversidade trabalha também na defesa da diversidade e no combate à discriminação dentro e fora do escritório, com a realização das campanhas da visibilidade gay e lésbica, da consciência negra, da sororidade, de testes de HIV e o lançamento de uma ouvidoria. 

“Os espaços para discutirmos essa questão têm se ampliado e têm existido interesse maior em debater o tema, mas isso não significa que a homotransfobia estrutural que existe no mundo jurídico tenha sido superada, muito longe disso. O que percebo é que existe um debate centrado no eixo Rio-São Paulo sobre diversidade, mas outras partes do Brasil ainda continuam enfrentando a questão como um tabu”, analisa Caon.


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Racismo

A questão do racismo no mundo legal e a baixa proporção de advogados negros nos quadros dos escritórios brasileiros é outro tema que vem ganhando importância, com a implantação de vários comitês nos últimos anos.

O intelectual, advogado e doutor em direito pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Adilson José Moreira, é conhecido por seu livro e pelo conceito de “racismo recreativo”, que explicita o viés racista da Justiça brasileira.

O professor de direito antidiscriminatório da Universidade Presbiteriana Mackenzie afirma que o racismo no mundo jurídico se manifesta das mais variadas formas e que esse não é um tema estudado nas faculdades de direito no Brasil. “O mundo jurídico, o corpo docente brasileiro é formado por pessoas brancas. Hoje, 80% dos professores brasileiros de direito são homens brancos heterossexuais de classe alta. Essas pessoas nunca sofreram discriminação na vida, portanto, pelo contrário, são sistematicamente privilegiadas pelo racismo”, analisa.

Ele explica que nos Estados Unidos, por exemplo, um dos fatores para a maior conscientização de atores jurídicos norte-americanos é que todas as faculdades de direito oferecem a disciplina de direito antidiscriminatório, algo que ainda está começando no Brasil.

“Então, quando os operadores do Brasil estão analisando questões relacionadas à discriminação nos seus mais diferentes aspectos, nos diferentes grupos, essas pessoas não têm elementos intelectuais para analisar a complexidade do problema”, afirma.

Um levantamento feito pelo Centro de Estudos das Sociedades de Advogados, o Cesa, constatou que menos de 1% dos integrantes dos escritórios (considerando sócios, associados e estagiários) é de negros. Um reflexo, segundo os especialistas, da dificuldade de acesso aos melhores cursos e menor qualificação como resultantes de formação escolar deficiente e várias questões socioeconômicas.

“É preciso uma política institucional de acolhimento e formação desses profissionais. Queremos aumentar a competitividade destes alunos para que eles ingressem nos grandes escritórios de advocacia”, afirma Adilson José Moreira.

De olho nesse mercado que representa 54% dos brasileiros, um dos maiores escritórios do país, o Mattos Filho, criou o grupo de afinidade Soma, direcionado à discussão da promoção da diversidade e da equidade étnico-raciais na firma e no ambiente jurídico. Como parte do programa, em 2019, o escritório lançou o Soma Talentos, política afirmativa para contratação de jovens negros estudantes de direito, que oferece mentoria com os sócios e acompanhamento próximo do RH. Em duas edições já concluídas, o Soma Talentos teve 1.151 inscritos e 33 estudantes aprovados para o cargo de auxiliar jurídico nos escritórios de SP e RJ

"Nós buscamos talentos e eles não têm cor, sexo nem orientação sexual", explica Roberto Quiroga, managing partner do escritório.

Em novembro de 2017 surgiu a A Aliança pela Equidade Racial, uma iniciativa de nove grandes escritórios (Pinheiro Neto, Mattos Filho, TozziniFreire, BMA, Machado Meyer, Veirano, Lefosse, Demarest e Trench Rossi Watanabe) que promove a inclusão e a equidade raciais de profissionais negros e negras nos escritórios de advocacia e mercado jurídico. Uma tentativa de reduzir a falta desses profissionais nos quadros das firmas brasileiras. 

"Eu vejo no futuro sócios e um número de advogados negros maior nos quadros do nosso escritório. Ainda está muito longe do desejável, mas não tenho dúvida que esse processo é irreversível, seja na área técnica ou administrativa", avalia Quiroga.


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