As questões jurídicas que envolvem a liberação do aborto no Brasil

Manifestação a favor da liberação do aborto na Praça Rooseveld, no Centro de São Paulo/ Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Manifestação a favor da liberação do aborto na Praça Rooseveld, no Centro de São Paulo/ Roberto Parizotti/Fotos Públicas
País tem poucas chances de aprovar, via Congresso, uma legislação que libere o exercício de escolha do direito reprodutivo das mulheres, mas pauta pode avançar no STF, segundo especialistas.
Fecha de publicación: 26/01/2021

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O assunto é polêmico e tem sido muito discutido nos últimos anos não só no Brasil, mas em todo o mundo. A questão da legalização do aborto no país volta com força depois que a Argentina aprovou a descriminalização em 30 de dezembro passado.

Por lá, todas as mulheres maiores de 16 anos podem escolher interromper a gravidez até a 14ª semana. Um debate que mobilizou o país no fim do ano passado.

Na América Latina, segundo a Organização Mundial da Saúde, três em cada quatro abortos realizados são clandestinos e podem causar traumas, deixar a mulher estéril ou provocar a morte. Dos 40 países e territórios que compõem a região, apenas seis permitem a interrupção da gravidez nas primeiras semanas de gestação: Cuba, Porto Rico, Guiana, Guiana Francesa, Uruguai e agora a Argentina.

O Brasil, segundo especialistas em direito ouvidos por LexLatin, ainda está muito longe de aprovar ou mesmo discutir, via Câmara dos Deputados e Senado Federal, um projeto consistente que mobilize a sociedade em torno da questão.

Por aqui o aborto é crime, com pena de 1 a 3 anos de prisão para a gestante e de 1 a 4 anos de detenção para quem faça o procedimento de retirada do feto. Mas existem três casos em que o aborto é permitido. O artigo 128 do Decreto Lei nº 2.848 de 1940 estabelece que o aborto poderá ser feito quando a gravidez é resultado de estupro ou põe em risco a saúde da mulher. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que é possível interromper a gestação se o feto não tem cérebro.

Mas a realidade no Brasil, segundo autoridades de saúde, mostra que a situação é uma questão de saúde pública. Muitas mulheres recorrem a clínicas clandestinas e fazem a interrupção da gravidez dentro de casa, buscando medicamentos e fórmulas caseiras que estão na internet. Por causa disso, segundo dados do próprio Ministério da Saúde, 4 mulheres morrem todos os dias no país em razão de um aborto malsucedido.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto, um levantamento que foi feito pela última vez em 2016, o aborto é um fenômeno frequente e persistente entre as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões. Naquela época, o estudo concluiu que 1 em cada 5 mulheres que têm até  40 anos já realizou pelo menos um aborto no Brasil.   

Outra situação que preocupa é número de crianças e adolescentes de cinco a 14 anos de idade que sofrem abortos naturais ou induzidos no país. De 2008 a 2020 foram quase 32 mil casos, sete por dia, também de acordo com o Ministério da Saúde. Para os especialistas, a questão precisa ser mais debatida, independente de qualquer ideologia, mas como algo que afeta a saúde pública.

As questões jurídicas que envolvem o aborto

Para o professor de criminologia e direito penal da USP, Mauricio Stegemann Dieter, a interrupção seletiva da gestação vai se consolidando como um direito humano e a discussão sobre o assunto é algo que o país terá de enfrentar nos próximos anos.

“Você pode ser contra ou a favor do aborto, mas o problema é você dizer que quem faz um merece ficar preso. Manter o crime parece violar a autonomia da mulher e a realização da própria vida como parte do exercício dos direitos reprodutivos. A criminalização do aborto é um exemplo típico de algo que só se sustenta numa base moral anacrônica, atrasada na história. Nós temos um atraso civilizacional importante aqui”.

Ele explica que argumento metajurídico e sociológico – que diz respeito à prática social - é algo fundamental para decidir questões que são de saúde pública. “Podemos ver a interrupção seletiva da gestação como um direito fundamental. Essa é uma perspectiva jurídica que fala ´do meu corpo, minhas regras´. Isso fundamenta uma luta de reconhecimento da identidade feminina”, afirma.

O criminologista, que também é sócio do Dieter & Simões Advogados Associados, não vê a possibilidade de uma legislação como a da Argentina ser aprovada na próxima década no Brasil. “É algo para pós-Bolsonaro. Do ponto de vista do Congresso, não vejo isso também na próxima década. Se existe alguma esperança de essa pauta avançar, isso com certeza passa muito mais pelo STF do que pelo Congresso”, avalia.


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A questão da descriminalização inclusive foi discutida numa audiência pública no STF em agosto de 2018, quando ministros e representantes da sociedade civil debateram a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana de gestação. Em dois dias, foram ouvidos 60 especialistas do Brasil e do exterior, entre eles pesquisadores de diversas áreas, profissionais da área de saúde, juristas, advogados e representantes de organizações da sociedade civil de defesa dos direitos humanos e entidades de natureza religiosa.

Direito à vida

O especialista em direito criminal, professor da FAAP e sócio do Bernardes Jr. Advogados, Francisco Bernardes Jr., vê com preocupação a questão da legalização, “no sentido de uma banalização e da desimportância dessa vida”. Ele acredita que a atual legislação contra o aborto no país favorece o direito à vida.

“Estamos tratando de vida intrauterina, que ainda não nasceu. A descriminalização do aborto usando questões utilitaristas não vai de encontro com o que a Constituição Federal estabeleceu como o bem jurídico de maior relevância, que é a vida. O que temos na proteção contra o aborto é uma vida autônoma, em que pese a dependência da mãe para subsistência de seu desenvolvimento, mas autônoma”, avalia.

O criminalista defende que o direito penal tem obrigação constitucional de proteção desta vida. “Nós não estamos falando de uma membrana da mãe, de um pedaço do corpo de uma mãe, nós estamos falando de uma vida em desenvolvimento. Por essa razão é que o aborto ganha status de crime e ganha essa proteção penal constitucional”.

Para o advogado, a legislação já traz possibilidades de aborto e formas de se evitar uma gravidez, como a pílula do dia seguinte. "O que não podemos esquecer é que estamos tratando de vida. A minha questão não é ideológica, mas uma análise jurídica”, explica.

Mariângela Gama de Magalhães Gomes, professora de direito penal e ouvidora de gênero da Faculdade de Direito da USP, explica que a razão da criminalização do aborto - a ideia de se proteger a vida intrauterina, do feto - não seria um problema se não trouxesse consequências muito piores para a mulher grávida e para a sociedade.

“A ideia da lei era proteger a vida, mas acaba empurrando essas mulheres para a clandestinidade, o que provoca uma situação mais lesiva para a própria vida dessas mulheres do que se não houvesse a punição. A lei acaba colocando a vida num risco maior do que se não houvesse a punição. Minha opinião é que a criminalização do aborto tem um efeito perverso”, avalia.

Para a advogada, a aprovação na Argentina é um começo, porque são pouco países que autorizam o aborto. “Isso é um indicativo de que se está olhando sob a perspectiva dos direitos das mulheres e não só da proteção do feto”.

Ela também acredita que, no curto prazo, não há essa mesma possibilidade por aqui, porque a sociedade brasileira é conservadora. “A chance que temos no Brasil de ter algum tipo de descriminalização ou mudança no tratamento legal ao aborto é muito maior via Judiciário do que pelo Legislativo”.

Questão social

Cecilia Mello, sócia do Cecilia Mello Advogados e ex-juíza federal no TRF-3, também defende que o aborto não deve ser analisado prioritariamente sob a vertente pessoal ou religiosa de quem opina, mas sim sob a ótica social e de saúde pública.

“Parece-me bastante obvio que uma pessoa de razoável situação socioeconômica tenha facilidade em se posicionar contrariamente ao aborto. Seguramente essa pessoa, se mulher, teve acesso à educação e terá condições de assumir a maternidade ou se socorrer de médicos particulares na hipótese de uma gravidez indesejada”.

Para a advogada, a realidade de mulheres mais carentes é muito diferente. “A criminalização da interrupção da gravidez fora das hipóteses legais acaba impulsionando essas mulheres, que já são hipossuficientes, para a adoção de métodos obscuros e extremamente arriscados de interrupção da gravidez. Essas práticas colocam em risco a vida dessas mulheres e geram uma grande demanda de atendimentos – pós procedimentos irregulares – ao SUS”, explica.

A ex-juíza acredita que o aborto necessita de um novo olhar do Poder Público. “Precisa ser compreendido como um direito, ser aceito como uma decisão de foro íntimo de quem o escolhe e, principalmente, ser tratado como um problema de saúde pública, que tem natureza universal e se insere dentro do espectro do dever estatal”.


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