As questões jurídicas que envolvem a quebra de patentes das vacinas contra a Covid

Esse é um conflito que evidencia, segundo os especialistas, a necessidade de equilíbrio entre a segurança jurídica aos investidores com a questão da dignidade humana/Pixabay
Esse é um conflito que evidencia, segundo os especialistas, a necessidade de equilíbrio entre a segurança jurídica aos investidores com a questão da dignidade humana/Pixabay
Medida não resolve de imediato falta de imunizantes, porque processo de adaptação e transferência de tecnologia leva anos.  
Fecha de publicación: 26/05/2021
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A discussão da quebra de patentes das vacinas contra a Covid-19 ganhou as manchetes nas últimas semanas depois que o presidente americano Joe Biden anunciou o apoio à medida. A China foi favorável, mas houve críticas de lideranças mundiais em nações como França e Alemanha. Outros países, como África do Sul e Índia, já defendiam a proposta desde o fim do ano passado na Organização Mundial do Comércio, a OMC.


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A justificativa do governo americano seria a tentativa de acelerar e distribuir os imunizantes em outras partes de planeta. “Trata-se de uma crise sanitária mundial e as circunstâncias extraordinárias da pandemia exigem medidas extraordinárias”, disse Katherine Tai, representante comercial dos Estados Unidos.

Segundo os especialistas, o governo americano deu a declaração porque se vê num imbróglio político, já que os Estados Unidos garantiram doses para toda a população, enquanto falta vacina para o resto do mundo.


“Biden está tentando deixar a responsabilidade para os laboratórios, quando na verdade os EUA deveriam estar transferindo parte do excedente de estoque para os países em desenvolvimento. Eles tentam se eximir da culpa, porque estão com um estoque imenso e não estão dividindo com ninguém”, avalia José Mauro Decoussau Machado, da área de propriedade intelectual do escritório Pinheiro Neto.


A princípio o Brasil se posicionou contra a medida, apesar de ter uma longa tradição que vem desde o início dos anos 2000, como foi o caso das drogas para combate ao HIV. Depois da aprovação no Senado de um projeto de lei permitindo a quebra temporária de patentes e insumos de vacinas contra a Covid-19, o governo brasileiro passou a apoiar as negociações na OMC. A nova posição foi anunciada no início de maio em nota dos Ministérios das Relações Exteriores, da Saúde, da Economia e de Ciência, Tecnologia e Inovações.

Mas afinal, como pode acontecer a quebra de patentes no país e como ela funciona juridicamente? LexLatin ouviu especialistas em direito médico e propriedade intelectual para analisar a questão.

De acordo com Wagner José da Silva, advogado de marcas e patentes da Associação Brasileira de Agentes da Propriedade Industrial (Abapi), a quebra de patentes é uma licença compulsória que consiste em um modelo jurídico previsto pelo acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC), ou Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (Trips), que entrou em vigor em 1995 na Organização Mundial do Comércio, a OMC.

O Trips determina que países-membros da OMC adotem padrões mais rigorosos de proteção patentária. A questão é polêmica, porque se de um lado torna os padrões mais confiáveis, por outro encarece o acesso às inovações tecnológicas, inclusive no setor farmacêutico.

As normas de direito internacional, da OMC, permitem que os Estados definam, por lei própria, o uso de patente sem autorização de seu titular. ”A lei precisa condicionar esse uso não autorizado a condições previstas nas normas internacionais, como o fracasso na obtenção da autorização por condições razoáveis, de seu titular, para suprir a necessidade do país e dentro das circunstâncias especiais que demandaram esse uso não autorizado”, afirma Saulo Stefanone Alle, especialista em direito internacional do escritório Peixoto & Cury Advogados.

Isso significa que, diante de alguns critérios políticos, jurídicos e econômicos, o país pode compulsoriamente afastar do detentor da patente e o direito de produzir e comercializar com exclusividade um determinado produto, como no caso atual das vacinas contra a Covid-19. Esse recurso tem como objetivo impedir eventuais abusos cometidos pelo detentor da patente, de forma a evitar o mau uso dos direitos oriundos da patente.

Por aqui, a licença compulsória está prevista nos Art. 68 a 74 da LPI nº 9.279/96 e foi usada em três momentos. Em 2001, o então Ministro da Saúde José Serra ameaçou quebrar a patente do medicamento Nelfinavir, do Laboratório Roche, para tratamento do HIV. Em 2003, o ministro da Saúde Humberto Costa usou a mesma estratégia com o medicamento Kaletra (Laboratório Abbott). Nos dois casos, a quebra das patentes não chegou a acontecer porque os laboratórios aceitaram negociar com o governo brasileiro e reduzir o valor dos medicamentos, o que resultou na preservação das patentes.

Em 2006 ocorreu a primeira licença compulsória decretada pelo ex-presidente Lula: a quebra da patente da Merck com o medicamento Efavirenz.  Esse decreto foi motivado pela justificativa de interesse público e pelo que foi qualificado como abuso de poder econômico. A Merck vendia o medicamento para o Brasil a U$ 1,60 e para outros países à U$ 0,60.  Com isso, foi possível que a Fiocruz fabricasse 130 milhões de unidades do medicamento desde 2007, o que permitiu o fornecimento do retroviral ao sistema de saúde pública beneficiando milhares de pacientes desde então.

Especificamente nos casos das vacinas contra a Covid-19, a produção em larga escala poderia, segundo os especialistas, ampliar o alcance dos imunizantes aos países menos desenvolvidos e reduziria os preços das vacinas, uma vez que mais laboratórios poderiam fabricá-las e oferecem ao governo e à iniciativa privada a um preço menor que os praticados atualmente.

Mas isso só pode acontecer no médio prazo e não terá efeito imediato, avaliam os advogados. Isso porque esse é um processo demorado, que leva anos.


“Um ato de licenciamento compulsório não se decreta hoje para ter vacina na rua amanhã. Estamos falando de absorção e tecnologia. Não é só o conhecimento da fórmula em si. Como é o processo produtivo e onde são adquiridos os insumos? O local de fabricação tem que ser montado de que jeito? São questões complexas, que levam tempo para construir”, afirma Paulo Brancher, sócio da área de propriedade intelectual do escritório Mattos Filho.


De imediato, o problema agora é outro: faltam insumos em todo o mundo. Então, mesmo que a emergência sanitária justifique a quebra de patentes, isso só poderá acontecer depois da transferência de tecnologia e adequação desse conhecimento para a produção por empresas capacitadas a produzirem vacinas.

“Essa é uma discussão que vai muito mais pelo lado emocional que racional. Ela é fácil de tomar sob o ponto de vista de uma canetada. Não tem um impacto de curto prazo a ponto de resolver o problema da distribuição e vacinas aqui no Brasil”, avalia Brancher.

“Com a receita do bolo, é preciso ter um cozinheiro especializado para fazer funcionar. A patente é a receita do bolo. O know how é aquilo que faz com que você consiga implementar a receita com perfeição para sair o resultado esperado. Fazer a licença compulsória, ainda que houvesse uma patente, é possível. Mas sem a tecnologia não dá para fazer muita coisa”, explica José Mauro Decoussau Machado.

Mas quais os benefícios da quebra de patentes para a saúde global no médio prazo? Por um lado, seria possível fabricar mais vacinas. Mas por outro, se essa quebra acontecer e for frequente, pode haver um desincentivo à pesquisa.

“Os Laboratórios poderiam deixar de investir em pesquisas e, com isso, não teríamos inovações no campo farmacêutico, deixaríamos de ter novos medicamentos, novas vacinas e novos insumos. Por isso que a quebra de patentes é um assunto muito delicado e deve ser tratado com critérios absolutos de extrema necessidade. Entendo que a pandemia é sim um desses momentos para tratar do assunto, todavia, garantindo sempre o direito dos detentores da patente em obter a devida e justa comissão de Royalties”, avalia Wagner José da Silva.

“Qual é o incentivo que eles vão continuar tendo para criar, quem é que vai botar dinheiro, tempo e recursos para poder desenvolver melhorias quando tivermos uma nova pandemia?”, explica Paulo Brancher.


“O maior valor das vacinas é o poder de devolver algum padrão de normalidade às relações humanas, inclusive as econômicas, no mundo todo”, afirma Saulo Stefanone Alle.


Esse é um conflito que evidencia, segundo os especialistas, a necessidade de equilíbrio entre a segurança jurídica aos investidores com a questão da dignidade humana. Mas não só isso.


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“Essa questão está sendo explorada politicamente e vendida como uma solução para todos os males, o que não é. Quando fizemos a quebra de patentes lá atrás no Brasil era uma situação muito diferente, um problema pontual, não havia insuficiência de insumos e havia uma capacitação e laboratórios. Hoje é uma situação muito mais desafiadora”, avalia José Mauro Decoussau Machado.  

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