Questões trabalhistas em operações de fusões e aquisições

Áreas comuns na sede do Twitter em San Francisco, Califórnia. / Foto: Amer Abu-Dayyeh - Built IN
Áreas comuns na sede do Twitter em San Francisco, Califórnia. / Foto: Amer Abu-Dayyeh - Built IN
Além de uma variável de custo, a equipe deve ser vista como um fator fundamental para o funcionamento de uma empresa.
Fecha de publicación: 30/11/2022

Num mundo cada vez mais globalizado, as fusões e aquisições têm se tornado mais frequentes, respondendo a critérios de crescimento e consolidação das empresas para responder às necessidades de um mercado mais exigente. Nesses processos, embora a maioria dos casos termine em simbiose bem entrosada entre adquirente e adquirido, as chances de tropeço sempre existem, principalmente quando se trata de uma compra.

“São processos normalmente complexos por se tratar de negócios relevantes que devem ser avaliados e avalizados juridicamente. Nesse sentido, é depositada uma grande responsabilidade e confiança nos advogados para que aconselhem não só de acordo com a lei, mas também com o próprio negócio”, destaca Mauricio Montealegre León, diretor de prática trabalhista do escritório colombiano Gómez Pinzón Abogados, referindo-se ao que está além da mera compra ou fusão entre empresas.

A recente mudança de mãos do Twitter ilustra bem as complexidades de um processo de M&A. Depois de meses de incerteza e depois de garantir o pagamento de 44 bilhões de dólares, o bilionário Elon Musk entrou nos escritórios da gigante das mensagens como seu dono absoluto e uma semana depois cerca de metade dos funcionários havia sido demitido, segundo informações fornecidas pelos trabalhadores.

Musk justificou a medida com base na necessidade de sanear as contas da empresa, que, segundo ele, perde quatro milhões de dólares por dia e deve reduzir custos, neste caso, reduzindo a folha de pagamento. Em contrapartida, ofereceu aos demitidos indenização equivalente a três meses de salário, assegurando que a oferta supera em 50% o previsto na lei.

A ação não só rendeu fortes comentários pela repercussão que pode ter no funcionamento da plataforma, como também uma ação coletiva para proteger os desempregados para que “não abram mão de seus direitos de obter o que a empresa lhes deve”, afirmou a advogada Shannon Liss-Riordan, representante legal dos cerca de 3.700 funcionários afetados.


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Embora seja um caso extremo, o exemplo serve para ilustrar aquela que é uma das regras que deve prevalecer em qualquer processo de M&A: a transparência. “Esse caso vai ficar para a história como um caso digno de análise porque vai além da mera compra. Desde que anunciou que compraria o Twitter, Elon Musk avisou que iria mudar completamente sua política e que faria demissões, e é isso que está fazendo”, diz a especialista venezuelana em direito trabalhista Maryolga Girán.

A diretora geral da Girán Abogados & Asociados lembra que as leis trabalhistas nos Estados Unidos diferem muito das vigentes na maioria dos países do continente. Supõe-se que Musk cumpriu as normas vigentes antes de tomar uma decisão como essa, embora não esteja claro se a violação legal e a proteção dos trabalhadores por demissão em massa se aplicariam, uma vez que essa figura não existe na jurisprudência dos EUA.

A opinião de Girán é endossada pelos especialistas Enrique Stile e Pablo García Morillo, sócios do escritório de advocacia argentino Marval O'Farrel Mairal, que apontam que as normas trabalhistas de seu país — e que se repetem em toda a América Latina — são protecionistas e o esquema compensatório e de benefícios é considerado um direito adquirido, pelo que a modificação ou redução desses direitos pode dar origem a demissões indiretas, com o consequente custo laboral e a perda de talentos.

“A harmonização de benefícios é complexa e pode implicar custos, pois para modificar ou eliminar benefícios é necessário conceder uma contraprestação econômica e celebrar um acordo objetivo de novação da relação contratual para evitar reclamações”, diz Stile.

Renato Dale, advogado da área trabalhista do Demarest, lembra que um instituto bastante utilizado para se reduzir quadros de empregados, custos de folha de pagamento e obter quitações que eliminem passivos de empresa é o chamado programa de demissão voluntária, ou demissão incentivada, no qual empresas negociam condições com o sindicato representante de seus empregados para oferecer pacotes de benefícios e indenizações e, em troca, os empregados que têm interesse se voluntariam para ter seus contratos de trabalho rescindidos concedendo quitações de seus contratos de trabalho.

Para manter em mente

Seja uma fusão ou uma aquisição, o maior desafio está em entender a transação para identificar o escopo de atuação que os advogados terão e as implicações que o negócio terá. “Nesse sentido, os entraves estão relacionados à correta quantificação de contingências e mecanismos de mitigação, bem como à recomendação empresarial para a tomada de decisões”, afirma Montealegre León.

Talvez por isso, Victorino Márquez, sócio do escritório de advocacia venezuelano D'Empaire Reyna & Abogados, observa que o conhecimento das condições da empresa em geral e da questão trabalhista são aspectos básicos para o sucesso do processo. “É a primeira coisa que o comprador tem que levar em conta, ver a abrangência do passivo trabalhista para entender como é composta aquela remuneração, se há partes e variáveis, observando todos os conceitos corretamente de acordo com a legislação trabalhista do país.”

O professor da Universidade Católica Andrés Bello acrescenta que deve-se levar em conta que a empresa cumpra todas as obrigações em matéria de segurança social, se há algum tipo de especificação ou solicitação ao ministério da área e, em geral, verificar o cumprimento das obrigações trabalhistas, aspectos muito importantes no caso dos países latino-americanos, mas com pouca incidência no extremo norte do continente.

Maryolga Girán concorda que isso é essencial para preservar a boa saúde da empresa que está nascendo, destacando a necessidade de descobrir possíveis "passivos trabalhistas ocultos", referentes a contribuições patronais não contabilizadas no salário ou dadas em contrapartida a este, situação que se tornou comum na Venezuela hoje, após oito anos de crise econômica, mas que também pode se aplicar a outros países com situações macroeconômicas complicadas.

O advogado do Demarest chama a atenção que esses passivos estarão diretamente relacionados ao nível de governança da empresa e respeito à legislação trabalhista no curso desses contratos de trabalho. "É possível verificar de antemão a existência de indícios desse nível de governança e respeito à legislação levando-se em conta o número de empregados de uma empresa, o turnover (índice ou frequência de demissões e contratações) e o volume de reclamações trabalhistas em curso perante a Justiça do Trabalho, bem como as matérias mais comuns discutidas nessas ações judiciais".

Outro aspecto que Márquez considera fundamental é comunicar a todo momento a mudança de empregador, caso ela ocorra, especialmente se for uma compra ou fusão que envolva patrimônio, quando geralmente há mudança de diretrizes.

Nesse sentido, Pablo García Morillo observa que nas empresas de tecnologia o principal obstáculo é o número de pessoal que presta serviços sob a modalidade de consultor ou contratado independente.

“Esse tipo de situação pode gerar altos riscos de sinistros, multas trabalhistas e apurações de débitos previdenciários”, diz.

García Morillo acrescenta que, no caso argentino, o ordenamento jurídico interpreta que "toda prestação de serviços tem natureza trabalhista, o que se soma ao fato de que não se deve descontar nenhuma taxa laboral na justiça trabalhista e que as altas taxas de juros para atualização dos créditos trabalhistas fazem das reivindicações trabalhistas e da indústria de julgamentos uma moeda corrente".

Referindo-se ao caso do Twitter, vale ressaltar que Musk sempre foi diametral com seus planos futuros, garantindo desde o início que eliminaria empregos. No entanto, a ação movida pelos trabalhadores demitidos da empresa é baseada na suposta violação da Lei de Adequação e Reciclagem do Trabalhador (WARN), que estabelece que qualquer empresa com mais de 100 funcionários deve notificar por escrito e com 60 dias de antecedência se 50 ou mais deles forem dispensados.

Se a ação é cabível ou não, saberemos nos próximos dias, quando o tribunal decidir, mas o caso revela o que acontece em muitos processos de fusões e aquisições no que diz respeito ao pessoal, que é percebido pelos adquirentes mais como uma variável de custo do que como recurso humano.

“O mais importante é entender que os trabalhadores são parte essencial do funcionamento das empresas. Esse intangível que os trabalhadores oferecem e sua relevância para o sucesso empresarial muitas vezes é desconhecido. Por isso, mais do que uma despesa, deve ser vista como o patrimônio humano do negócio”, destaca Montealegre León.

Quando não há outro remédio

Além da história ainda não finalizada no Twitter, em muitas ocasiões é praticamente inevitável que a fusão entre empresas ou a compra seja acompanhada de alterações na folha de pagamento, seja por duplicação de funções, eliminação de operações, redimensionamento de objetivos, para buscar melhor desempenho ou simplesmente porque o novo proprietário acredita que pode administrar melhor os recursos humanos.

Mauricio Montealegre observa que a primeira coisa é entender que a decisão de demitir envolve indivíduos e famílias, por isso a linguagem e a forma de abordá-la são essenciais para que o resultado seja o esperado.

“Logo, obviamente, é preciso verificar se há restrições para rescindir contratos, o que pode criar obstáculos para o que o negócio precisa”, diz.

Nesses casos, duas coisas devem ficar bem claras: o que estabelece a legislação trabalhista vigente em cada país e a musculatura financeira para garantir pacotes atrativos que viabilizem a conciliação com os desempregados.

Quanto ao primeiro, acontece frequentemente que o novo proprietário ou líder da empresa dominante numa fusão acredite que os critérios válidos num país são válidos em qualquer outro, quando a verdade é que as leis variam de país para país e, embora haja uma certa uniformidade de critérios na América Latina, há variantes.

A título de exemplo: apesar de suas variações, as leis do México, Colômbia e Chile preveem a figura da continuidade trabalhista em caso de fusões e aquisições, enquanto no Peru não há regulamentação expressa sobre transferência de empresas e relações trabalhistas, apesar existirem elementos de fundo que permitem garanti-las.

Outro elemento a ser levado em consideração é o prazo para tramitação das reclamações trabalhistas. García Morillo lembra que na Argentina esse prazo de prescrição é de dois anos a partir do término do vínculo empregatício. No entanto, “muitas vezes as contingências se concretizam mesmo depois de vencidos os prazos de indenização estabelecidos no contrato de compra e venda de ações”, observa.

No Brasil, de acordo com os advogados do Demarest, é necessário estar atento não somente para a folha de pagamento de uma empresa, mas também para as obrigações acessórias que decorrem do simples fato de uma empresa possuir empregados – como a obrigatoriedade de controle de jornada de empregados, a existência de convenções coletivas de trabalho, a legislação que prevê obrigatoriedade de negociação para distribuição de lucros e resultados com empregados, a obrigatoriedade de contratação de aprendizes e de pessoas com deficiência, entre outras.

Eu conheço, portanto ofereço

Quanto à oferta de pacotes atrativos para os desempregados com vistas à conciliação, “é preciso garantir que haja recursos para investir nesse quadro de pessoal, porque a manutenção de um ambiente de trabalho adequado depende muito disso”, diz Girán, destacando que é preciso ter em mente que, no caso das indústrias, costuma-se encontrar trabalhadores com bons salários e muitos anos de serviço, o que não costuma ocorrer no setor de comércio e serviços.

A este respeito, Enrique Estile assinala que, tanto o quadro de pessoal com muitos anos de experiência, como o nível de conflito tendem a ser variáveis a se levar em conta na hora de adquirir uma empresa. Ele comenta que, em alguns setores econômicos com sindicatos fortes, também é difícil demitir funcionários e há risco de reintegração independentemente de ter pago a indenização legal.

Também é muito importante gerenciar o risco de prestadores de serviços que possam alegar a existência de vínculo empregatício. Embora as reivindicações sejam geralmente muito altas, elas geralmente ocorrem em pequenos grupos. No entanto, se o comprador considerar a possibilidade de se desfazer de um número significativo deles, o risco de uma reclamação coletiva pode ser muito oneroso e até eventualmente ruinoso para o comprador.

Stile lembra que é preciso conhecer detalhadamente os benefícios que os trabalhadores usufruem antes de fazer qualquer oferta.

"É importante observar a cultura e as fórmulas usadas no passado, pois os funcionários afetados provavelmente as invocarão como direitos adquiridos", diz ele.

Em concordância com outros especialistas, ele diz que ter um histórico claro de remuneração e benefícios é fundamental, já que a concessão de auxílios como estacionamento, academia ou carro não registrado como parte da remuneração pode gerar duplicação de indenizações, dívidas previdenciárias e sociais, além de reclamações trabalhistas posteriores.

Assim, existem múltiplas circunstâncias que podem impedir o processo. De fato, segundo Shaun Spearmon, diretor da Kotter International, consultoria organizacional, entre 70% e 90% dos esforços de M&A não atingem todos os objetivos propostos e entre as muitas coisas que podem não dar certo está uma ação judicial de um ou vários trabalhadores.

“É possível que isso aconteça porque o novo proprietário decide alterar as condições contratuais e, para isso, tem de estar preparado. De qualquer forma, deve-se buscar um acordo, negociação consensual”, acrescenta Victorino Márquez, cujo critério é que sempre haverá alternativas de conciliação.

As ferramentas para tanto são múltiplas e passam por compensações atraentes, modificação de pagamentos, criando prazos para coincidir com prazos de prescrição, apólices de seguros etc.

Segundo os advogados do Demarest, em adição à negociação coletiva ou a busca de acordos individuais com a chancela da Justiça do Trabalho, a alternativa possível é a análise das rotinas da empresa adquirida ou incorporada e a correção de práticas visando a redução ou a eliminação de riscos para o futuro. 

"Diante da dificuldade de adoção de medidas que blindem de fato as empresas contra processos judiciais e administrativos trabalhistas, é de extrema importância o estabelecimento de regras de limitação de responsabilidade entre as partes e a outorga pelos vendedores de declarações e garantias que permitam aos investidores e adquirentes terem a indicação da atual situação da empresa (além da verificação realizada em auditoria) e buscarem indenização contra passivos trabalhistas resultantes de fatos anteriores ao fechamento da operação", afirma Bruna Toledo Pacheco, sócia da área de fusões e aquisições do Demarest.

Em consonância com o que foi dito anteriormente, os especialistas da Marval O'Farrel Mairal acrescentam que, no caso de ações individuais, existe um procedimento pelo qual as partes podem chegar a um acordo conciliatório perante as autoridades trabalhistas, que têm efeito de coisa julgada e qualquer reclamação relacionada ao vínculo empregatício e/ou seu término poderá ser automaticamente indeferida.

“É prático oferecer entre 20% e 30% adicionais à compensação legal para obter o consentimento do empregado afetado para assinar um acordo dessa natureza”, apontam.

Eles também destacam que, nas demissões em massa com um sindicato envolvido, é importante assinar um acordo no Ministério do Trabalho e, posteriormente, assinar acordos individuais com os funcionários afetados.

Montealegre corrobora essa opinião, lembrando que não há negócio sem risco.

“O risco é sempre um elemento que deve ser compreendido e gerido. Nesse sentido, a perspectiva trabalhista sempre apresentará constatações incômodas e preocupantes, pelo que as decisões devem ser racionais e com sentido jurídico prático”.

No fim das contas, a opinião dos especialistas consultados é unânime: a melhor forma de proteger os funcionários e a empresa é oferecer clareza nas informações. “A transparência é a melhor ferramenta, porque acalma a angústia que esses processos geram nos trabalhadores”, diz Maryolga Girán.

"A clareza nas informações, bem como saber a magnitude do risco em termos práticos, permite criar uma margem de manobra para a eventual materialização do risco", aponta Mauricio Montealegre.

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