Reordenação das cadeias produtivas globais é oportunidade para Brasil avançar em exportações

Oportunidade surge especialmente após a implementação do acordo de livre comércio do Mercosul com a União Europeia./Canva
Oportunidade surge especialmente após a implementação do acordo de livre comércio do Mercosul com a União Europeia./Canva
Pandemia e invasão da Ucrânia criaram os incentivos econômicos necessários para que EUA e Europa mergulhassem em um processo de reorganização das cadeias de produção em que estão inseridos.
Fecha de publicación: 16/02/2023

Em maio faz 50 anos que o então presidente brasileiro, o general Emílio Garrastazu Médici, visitou Portugal e recebeu a proposta da criação de uma área de livre comércio entre os dois países. Hoje, ele talvez fosse criticado nas redes sociais após ter declinado da proposta só para não ferir a relação do Brasil com a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc), que em 1980 se tornou a Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Intercâmbio (Aladi), em um processo que deu origem ao Mercosul. Um esforço ainda incapaz de se traduzir em maior inserção do país no comércio internacional. A assinatura do tão anunciado acordo do bloco com a União Europeia, contudo, pode mudar essa história.

“A falta de acordos de comércio do Brasil, muito causada pela amarração ao Mercosul, é um fator relevante a impedir o crescimento do comércio internacional. Isso porque o Brasil, com um mercado gigantesco, um PIB que já chegou a ser o sexto do planeta, tem uma participação no comércio internacional totalmente desproporcional ao seu poderio econômico. Olhando para trás, vemos que países muito menores e que, não por coincidência, têm ramificações de comércio mais amplas, ocuparam posições mais preponderantes”, critica Mauro Berenholc, sócio do Pinheiro Neto Advogados.

A lembrança de um insuspeito general Médici defendendo a integração dos países latino-americanos pode surpreender um mundo que reavivou os conceitos de direita e esquerda, como se estivéssemos na Convenção Nacional da França revolucionária. Se a defesa é ideológica, ela não tem partido e é fruto de um projeto do estado brasileiro. Não de um só governo. A propósito, o advogado Renê Medrado, também sócio do Pinheiro Neto, aponta que a Argentina é um dos principais parceiros comerciais do Brasil, mas o Governo Bolsonaro quis abrir novas frentes de negociações para além do Mercosul, “de maneira muito consistente com o que já vinha ocorrendo no Governo Temer e até mesmo no Governo Dilma. Então, existe uma linha de acordos que vêm sendo negociados, como agora com a Coreia do Sul.”


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“Milagre econômico”: do café para a soja

O Governo Médici ocupou quase todo o período conhecido no Brasil como o do “milagre econômico”. Entre 1968 e 1973, o PIB brasileiro cresceu a taxas superiores a 10% ao ano. O principal produto das exportações brasileiras, no início do período, ainda era o café, uma marca da República Velha, que terminara em 1930, com chegada de Getúlio Vargas ao poder. O sucesso nos esforços para diversificar e ampliar a pauta de exportações levou o volume financeiro de café exportado pelo Brasil sair de uma fatia 41,8% para 20,5%. Foi nesse período que o Brasil descobriu a soja, até hoje um dos principais produtos de exportação do país, que saiu de 1,3% do volume de exportações nacional para 15,2%. O volume total de exportações saltou de US$ 1,88 bilhões para US$ 6,19 bilhões. Em outubro de 1973, o “milagre” acabaria diante da primeira crise do petróleo, quando a OPEP dobrou seus preços por causa da Guerra do Yom Kippur, que reuniu Egito e Síria contra Israel. O Brasil importava mais de 80% do petróleo que consumia.

Diante dos primeiros passos do terceiro Governo Lula, a questão é: em que iniciativas o país deveria investir, se não para voltar a crescer como naquele período, ao menos para reduzir riscos como o que colocou um fim ao “milagre” e, enfim, voltar a aproveitar as oportunidades de vender mais para o mundo?

“O momento atual é marcado pela pandemia da Covid-19, que mostrou que concentrar a produção num lugar só pode gerar problemas. Quando os EUA se viram com dificuldades de produzir antibiótico porque o IFA (ingrediente farmacêutico ativo) vinha da China ou da Índia e houve um colapso do sistema de transportes, acendeu a luz vermelha. O movimento para trazer de volta a indústria que saiu dos EUA já existe há muito tempo. O risco já era conhecido, só que o preço é tão mais baixo que acabam correndo esse risco. A reorganização das cadeias produtivas, então, seria a resposta”, explica o superintendente de Desenvolvimento Industrial da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Renato da Fonseca, sobre um primeiro risco enfrentado e a oportunidade que ele abre.

Reindustrialização x globalização

Adotar políticas que contribuam para retomar determinados níveis de reindustrialização é, assim, um debate contemporâneo, nos países ocidentais. Coordenador de estudos econômicos internacionais do Ipea, Fernando Ribeiro só não acredita que o Brasil ou qualquer outro país da América do Sul tenha condições, hoje, de pegar essa onda, ao menos na relação com os EUA, porque esses países não produzem o que os EUA compram da China. “A última vez que os EUA realmente tiveram interesse na América do Sul foi na década de 1990, com a Alca (Área de Livre Comércio das Américas). O que eles querem é manter a China longe”, comenta.

Já no acordo com a União Europeia ele vê que “tem muita complementaridade”, o que pode ser positivo para os dois lados. O único entrave é que eles “estão colocando um peso grande em sustentabilidade ambiental e vão exigir que se cumpram regras neste sentido que estão no texto do acordo”. Será preciso implementar o UNFCCC (United Nations Framework Convention on Climate Change) e cumprir o Acordo de Paris, além de outros acordos já firmados pelo Brasil, como a Convenção sobre Biodiversidade, a Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas e sobre a Fauna e Flora Selvagens (CITES) e o Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Agricultura e a Alimentação.

Estudo detalhado do acordo pela Apex Brasil, a agência brasileira de promoção de exportações, concluiu que as principais oportunidades para o país estão concentradas em máquinas e equipamentos de transporte, produtos químicos relacionados, artigos manufaturados classificados principalmente pelo material, obras diversas, calçados e artigos manufaturados diversos, produtos alimentícios, óleos animais e vegetais e materiais em estado bruto. Em termos de oportunidades por país do bloco europeu, a Alemanha concentra 41,5% do valor das importações, seguida da França (14,2%), Itália (11,2%), Espanha (6,9%), Países Baixos (6,5%), Polônia (5,2%) e Bélgica (4,7%).

Para não ficar para trás, a China também tem se movimentado em busca de acordos de livre comércio com os países da região, já tendo anunciado a assinatura de um com o Equador, no início do ano. Há negociações em curso com o Uruguai, o que viola o pacto do Mercosul. Na avaliação do advogado Renê Medrado, porém, isso “faz com que a União Europeia fique mais atenta para garantir que o acordo com o Mercosul entre em operação”. Até porque a China já anunciou o interesse em negociar também com o Brasil.

O discurso da reindustrialização reforça ondas de protecionismo e nacionalismo que já se espalhavam antes da pandemia e que fazem alguns temerem uma retração mais forte da globalização. Fenômeno similar aconteceu após a eclosão da I Guerra Mundial, dando fim ao período de expansão no comércio mundial, entre 1875 e 1914, característico do que o historiador Eric Hobsbawm denominou a “Era dos Impérios”. O comentarista-chefe do Financial Times, Martin Wolf, publicou um texto recente que é quase um apelo para que o “capitalismo internacionalmente aberto” não seja abandonado. Ele escreveu de Davos, onde os debates deste ano se deram em torno da reorganização das cadeias de produção e comércio globais.


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Reforma tributária é prioridade

Se nem tanto com os EUA, mas com a implementação do acordo do Mercosul com a União Europeia, esta talvez seja a grande oportunidade que o Brasil pode aproveitar hoje para ampliar sua oferta de produtos de maior valor agregado para exportação. Desde seus primeiros dias como ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, o vice-presidente Geraldo Alckmin parece em sintonia com a indústria, que também já colocou suas propostas à mesa, seja por meio de instituições como a Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), setor responsável pelo maior déficit comercial do país em 2022 (de US$ 63 bilhões), seja pela própria Confederação Nacional da Indústria (CNI).

“Precisamos aprender rapidamente com exemplos como o dos EUA, em especial com as políticas que foram implementadas para o seu shale gas (gás de xisto), que já resultaram em mais de US$ 200 bilhões de investimentos, e da Índia, que estabeleceu plataformas regionais de investimento que, em menos de uma década, já a colocaram entre as 10 maiores indústrias químicas no mundo. Agora, o momento é mais adequado para o Brasil customizar uma Política Industrial Setorial baseada nas vantagens comparativas brasileiras, fortalecendo a competitividade doméstica”, destaca a diretora de Economia e Estatística da Abiquim, Fátima Giovanna.

A CNI formulou um documento com 14 propostas prioritárias para os 100 primeiros dias do governo. Quase um consenso em todo o setor produtivo é a necessidade de uma reforma tributária. De acordo com Renato da Fonseca, “o sistema tributário hoje é tão complexo que só a redução de custo com uma simplificação já é um ganho. Só a criação de um imposto único já melhora, mas o grande problema da indústria, principalmente do complexo metal-mecânico é o imposto que incide sobre toda a cadeia produtiva. Tem que ter crédito financeiro sobre o imposto que pagou na cadeia”, alerta. Além disso, ele aponta a burocracia e a ineficiência alfandegária, e a falta de mais linhas de financiamento às exportações: “Em 10 anos, a linha de  crédito BNDES Exim saiu de R$ 20 bilhões para R$ 2,5 bilhões. Se a gente não tivesse crédito, a Embraer não teria conseguido exportar o que exportou”.

Pesquisadora do Centro Brasileiro de Relações Internacionais e do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV, onde coordena o Indicador de Comércio Exterior (Icomex), Lia Valls lembra que as commodities ganharam mais espaço na pauta de exportações brasileira a partir  dos anos 2000, com o processo de urbanização e criação de infraestrutura da China: “Não faz mal nenhum exportar produtos intensivos em recursos naturais. É aí que está nossa grande vantagem. Mas pode-se agregar mais valor. Exportação tem a ver com competitividade, produtividade, inovação tecnológica”.

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