Nesta sexta-feira (3), o Senado Federal deve apreciar uma das mais abrangentes e ambiciosas propostas jurídicas no âmbito do combate ao novo coronavírus: o Projeto de Lei nº 1179, de 2020, que institui o chamado RJET (Regime Jurídico Emergencial e Transitório), que propõe uma série de alterações jurídicas em diversas áreas, da prescrição de contratos ao aluguel, de suspensão de trecho do Código de Defesa do Consumidor ao direito de família. No Direito Concorrencial, as mudanças são também relevantes.
O artigo 21 poderá suspender, até o final de outubro, a aplicação de penalidades, pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), sanções sobre a prática de comércio abaixo do preço de custo – conhecido como "preço predatório" – e a cessação de operação de uma pessoa jurídica sem devida justificação.
A proposta ainda prevê que as operações de formação das joint ventures, enquanto durar a pandemia, poderão ocorrer antes da análise do ato de concentração pela autoridade antitruste. As duas mudanças ocorrem no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
A relatoria do PL é da senadora Simone Tebet (MDB-MS). Autor do projeto, o vice-presidente do Senado, Antonio Anastasia (PSD-MG), argumenta que a medida foi desenhada com a ajuda de, entre outros nomes, do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, e o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Antônio Carlos Ferreira.
"O projeto de lei chega, assim, a um adequado equilíbrio de posições em áreas extremamente complexas e de difícil ponderação entre interesses", explicou, em sua justificativa.
Na prática, a medida pode permitir associações mais rápidas entre empresas em esforços conjuntos – por exemplo, se duas farmacêuticas se unirem para a produção de uma vacina, ou montadoras na construção de respiradores. O mesmo pode valer para o setor aéreo, caso as empresas que operam no país resolvam diminuir rotas e compartilhar trechos, aeronaves e equipes.
Porém, há críticas ao projeto. "É uma medida emergencial, mas do ponto de vista concorrencial ela não está no melhor formato em que poderia estar", afirma o professor do Instituto Brasiliense de Direito Público e sócio de Gico, Hadmann & Dutra Advogados, Eric Hadmann Jasper.
O representante argumenta que não é uma questão de as medidas serem ou não necessárias, mas sim "que a proposta cria mais dúvidas, em determinados pontos, do que soluções".
Como exemplo, Hadmann cita a suspensão das penalidades por condutas ilícitas no setor como de pouca aplicação dentro da jurisprudência do conselho. "Não entendo a escolha destes dois incisos. O Cade até abriu, recentemente, uma investigação no setor de insumos e medicamentos, para preços abusivos, o que seria o oposto", disse.
O problema, aponta, seria mais grave: "para quem está no dia a dia do antitruste, esta lista presente no artigo 36 é um rol exemplificativo de condutas. Você suspender dois incisos não ajuda em nada, porque o caput do artigo ainda permitiria a punição destas mesmas condutas pelo Cade".
Hadmann afirma não se lembrar de alguma vez da aplicação de pena por cessação de atividades sem a devida justificação. "Se foi, foi muito pouco", argumentou o professor.
Mudanças no artigo 90
Para o sócio do WZ Advogados, Pedro Zanotta, a proposta apresentada pelo Senado sobre atos de concentração precisa ligar o benefício à situação: "A obrigação de submeter contratos de joint ventures e consórcios há de ocorrer, desde que as propostas corram de maneira comprovadamente relacionadas com o atual momento de crise", comentou.
"No artigo 21 isto não ficou claro, afirmando apenas que se suspende as duas condutas como infração até outubro, e suspender a apresentação de contratos associativos ao Cade".
O texto poderia mesmo ir mais à fundo, afirmou o professor Hadmann: "esta suspensão também não está clara. Poderia indicar quais setores essenciais afetados: são parcerias na fabricação de ventiladores, ou na cadeia de insumos para a população manter a alimentação, ou qualquer setor poderá fazer parceria, permitindo que setores que não estão sendo afetados em cheio pela crise podem aproveitar o embalo para fazer parcerias que, antes, não seriam aprovadas?"
Segundo Hadmann, isto está em consonância com o que se é visto em países como a Austrália e Noruega, e poderia se mostrar efetivo em conjunturas causadas pela pandemia do Covid-19, como o caso das empresas aéreas.
Uma das emendas apresentadas antes da apreciação do plenário colocou um prazo temporal para a vigência dos contratos - apenas aqueles acordos com validade enquanto vigorar o estado de calamidade poderão usufruir da medida.
O autor da proposta, senador Ciro Nogueira (PP/PI) afirmou que ela dá "garantia para a empresa de que a operação foi por essa instância analisada e aprovada, ficando eliminada, portanto, a possibilidade de se argumentar, a posteriori, a prática de qualquer ilícito concorrencial, evitando-se, assim, a instauração de processo administrativo contra as empresas interessadas".
A questão do lapso temporal é bem vista pelo setor. "Entendo que esta definição dada pelo senador Ciro era muito necessária" argumentou a sócia-diretora do Costa Tavares Paes Advogados, Maria Cibele Crepaldi Affonso.
"A proposta da emenda deixa claro que o fato das empresas não precisarem levar os contratos de associação à análise não afastará a análise posterior – que também já é uma hipótese prevista em lei."
Maria Cibele lembra que qualquer ato poderá ser analisado pelo tribunal. Com isso, as medidas não tirariam do Cade o poder de investigação, a qualquer momento.
"Isso não impede o Cade de fiscalizar a conduta depois", complementou Zanotta, que atua no tribunal há 26 anos. "Como o PL é indiscutivelmente voltado para combater ou minimizar efeitos da crise, passada esta crise, esta atitude recorrente pode ser investigada e punida pelo órgão."
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