Skinny labeling: prática polêmica representa marco para acesso a medicamentos mais baratos?

Até o momento a prática, em teoria, não seria permitida no país/Pixabay
Até o momento a prática, em teoria, não seria permitida no país/Pixabay
Anvisa abriu consulta pública para avaliar a bula de remédios genéricos e similares no Brasil.
Fecha de publicación: 22/01/2023

Uma prática comum usada pela indústria farmacêutica fora do Brasil para burlar a proteção de patentes é excluir da bula, principalmente nos remédios chamados de genéricos, as indicações para o uso do medicamento. Existe até uma expressão americana para isso: skinny label, que pode ser traduzida de forma literal como “indicação magra”. A tradução não está longe de seu real significado, segundo especialistas da área.
 

Essa discussão está sendo alvo por aqui, desde dezembro do ano passado, de uma consulta pública da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A intenção é avaliar a bula de medicamentos genéricos e similares e flexibilizar a norma, o que pode beneficiar a indústria de genéricos. 

 

A regra que vale atualmente é de que o fabricante do genérico é obrigado a ter uma bula igual ao do remédio de referência, protegido pela regra de Propriedade Intelectual na maioria dos casos. Em outras palavras, a bula de um medicamento genérico ou similar deveria incluir todas as indicações para as quais o medicamento referência possui registro. Isso está na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 47, de 8 de setembro de 2009).

 

Esse tipo de resolução nada mais é que uma regulamentação técnica, proposta pela Anvisa. As RDCs servem para estabelecer processos regulatórios, práticas e padrões de qualidade para produtos e serviços sob regulamentação da agência. No entanto, em alguns casos, essa obrigação pode representar um empecilho para a comercialização de medicamentos genéricos e similares.

 

A proposta em discussão na Anvisa quer alterar pontualmente o artigo 14 da RDC 47 para permitir que a bula de medicamentos genéricos e similares tenham indicações diversas daquelas do medicamento de referência, quando este for protegido por patente. Assim, a mudança permitiria que os fabricantes de genéricos possam excluir da bula indicações terapêuticas, formas de administração, posologia, concentração das doses e demais informações protegidas por patentes de segundo uso médico. 

 

Um medicamento genérico ou similar só pode ser comercializado no país a partir do momento em que o medicamento referência correspondente entra em domínio público, a partir da data de expiração da patente que garante ao seu titular o direito de impedir terceiros de fabricar e comercializar o produto. No entanto, existem casos em que um produto já está em domínio público, mas não uma outra indicação de seu uso.

“O medicamento referência X e seu uso inicial para o tratamento de uma doença A já estão em domínio público, mas o medicamento X também é indicado para o tratamento da doença B e esta última indicação ainda estaria protegida por patente. Como é exigido que a bula de um medicamento genérico ou similar seja idêntica à bula do medicamento referência, para ter seu registro deferido, um medicamento genérico ou similar de referência X precisaria incluir em sua bula ambas as indicações A e B. No entanto, não é possível incluir B sem infringir direitos de terceiros”, explica Mônica Gurvitz, sócia do escritório Montaury Pimenta, Machado & Vieira de Mello


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Situação parecida acontece nos Estados Unidos, onde surgiu há alguns anos, a expressão skinny label. O conceito do skinny label é permitir que a bula de um medicamento genérico ou similar seja mais restrita que a bula do medicamento referência, excluindo quaisquer indicações ainda protegidas por patentes. 

“Embora seja um conceito fácil de ser compreendido, sua prática traz desdobramentos complexos, principalmente se considerarmos que muitas vezes um medicamento é prescrito para indicações além das descritas na bula (uso off-label), o que representaria a perda da exclusividade de um uso ainda protegido por patente”, afirma Gurvitz.

 

Até o momento, essa prática, em teoria, não seria permitida no Brasil,  mas, com a consulta pública da Anvisa, o assunto começa a ser analisado por aqui. A Anvisa propõe alterar o texto da legislação que versa sobre as bulas de medicamento para permitir que as de genéricos e similares sejam diferentes de suas respectivas bulas padrão em relação a indicações protegidas por patente.

 

De acordo com a relatora-diretora da consulta pública, Meiruze Sousa Freitas, a patente é um título de propriedade temporária sobre uma invenção ou modelo de utilidade outorgada pelo Estado ao titular detentor dos direitos sobre a criação. Em seu parecer, ela explica que um sistema de patentes eficaz viabiliza a inovação tecnológica, o progresso científico, fomenta e incentiva investimentos, proporcionando segurança jurídica necessária ao desenvolvimento das relações econômicas. 

 

Porém, há questões complexas envolvidas no patenteamento de segundo uso, uma vez que abrange outros aspectos, tais como legais, sociais, das políticas públicas de saúde e fatores econômicos.

“Alguns especialistas defendem que a aceitação das patentes de segundo uso em medicamento parece ser o resultado de uma estratégia para prolongar a vida das patentes existentes, justificadas por razões financeiras. Contudo, particularmente em países em desenvolvimento, essas práticas podem ter um impacto prejudicial na política dos genéricos e, portanto, no acesso aos medicamentos. Ressalto a importância de uma política de patentes sólida e coerente com os objetivos da saúde pública, em equilíbrio com as medidas para ampliar o acesso aos medicamentos”, diz a relatora.

Um dos principais argumentos para a mudança de parâmetro está na dificuldade do acesso da população em geral, principalmente a mais carente, aos medicamentos. Há um debate, não só no Brasil, de que sistemas rígidos de defesa das patentes, no caso da indústria farmacêutica, interferem no acesso generalizado aos medicamentos, criando monopólios que mantêm esses produtos com altos preços.

Um dos argumentos para que a mudança seja aceita é que a Federal Drug Administration (FDA), o órgão governamental dos EUA que faz o controle de medicamentos, e a Agência Europeia de Medicamentos (conhecida como EMA) também já aprovaram mudanças parecidas ao que está sendo proposto pela Anvisa. No Brasil, a Procuradoria Federal da entidade divulgou um parecer “quanto à possibilidade de que medicamentos genéricos e similares se diferenciem quanto às indicações terapêuticas dos medicamentos de referência, quando da ampliação da proteção patentária para uma nova indicação”.


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Para os advogados, um dos efeitos adversos dessa nova regulação pode ser o desestímulo à continuidade da pesquisa relacionada a novos usos de medicamentos existentes. "De qualquer forma, é pouco plausível que esse impacto seja maior do que aquele já provocado pelos órgãos reguladores dos EUA e da União Europeia. Sabemos que os centros de inovação da indústria farmacêutica ainda estão massivamente concentrados em tais regiões", avalia Amauri Saad, sócio da área Regulatória e Life Sciences do Siqueira Castro.

"Em que pese a relevância da referida consulta pública para o enriquecimento da discussão e colheita de sugestões e opiniões sobre skinny labeling, é prioridade para a adoção do skinny label ― não estamos fazendo juízo de valor e sim analisando o aspecto legal ― que tal prática seja consagrada e regulada no ordenamento jurídico brasileiro na forma de lei, tal qual nos Estados Unidos e Europa, de maneira a conferir maior segurança jurídica às partes envolvidas", afirma Thalita De Marco Vani, sócia do VBD Advogados.

Outra causa que motivou esse pedido de mudança, além da questão financeira e social, foi a pandemia da Covid-19. “Diante de uma crise de saúde sem precedentes, a comunidade de saúde pública lançou uma campanha para ampliar o acesso em larga escala às vacinas e a medicamentos de qualidade. No momento, discussões sobre o desenvolvimento da saúde global e especificamente quanto ao acesso a medicamentos estão agora impulsionando os países para uma maior busca de soberania no abastecimento dos suprimentos estratégicos para saúde, os quais incluem os medicamentos”, diz a relatora da consulta em seu parecer.

"No Brasil, os genéricos são os únicos medicamentos a que tem acesso grande parcela da população, de modo que os prejuízos decorrentes do desaparecimento de um medicamento na versão genérica seriam enormes. Por essa razão, entendemos que a orientação proposta pela Anvisa vai na direção correta", afirma Amauri Saad.

A consulta pública está disponível no site da Anvisa e interessados podem apresentar suas contribuições até 6 de março de 2023. A questão envolve consumidores e grandes players da indústria farmacêutica e promete novos capítulos de uma polêmica que envolve bilhões de reais.

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