Só a economia deve importar na análise do Cade?

Lina Khan, a presidente do Federal Trade Commission, o órgão antitruste dos EUA: por lá, atuação vai além da economia/Agência Senado
Lina Khan, a presidente do Federal Trade Commission, o órgão antitruste dos EUA: por lá, atuação vai além da economia/Agência Senado
Em tribunais mundo afora, cresce espaço de visão holística no antitruste e temas como meio ambiente e relações trabalhistas.
Fecha de publicación: 25/05/2022

O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), principal estrutura de antitruste brasileiro, tem três missões a zelar: a preventiva, para analisar e decidir sobre as fusões, aquisições de controle e operações de mercado já ocorridas; repressiva, atuando para evitar lesões à economia brasileira; e educativa, para instruir a sociedade sobre a necessidade e os benefícios da livre concorrência no país. 

Há pelo menos dez anos, quando a mais recente Lei da Defesa da Concorrência foi promulgada, o respeitado órgão antitruste baseia sua atuação em leis e princípios estritamente econômicos. Mas essa abordagem começa a se distanciar, pouco a pouco, da visão de outros órgãos antitruste mundo afora, que passaram a usar de uma abordagem mais ampla para decidir casos sobre a economia. Na Europa e nos EUA, temas como os impactos das decisões aos trabalhadores e ao meio ambiente passam a ser relevantes na tomada de decisão. 


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Para especialistas ouvidos por LexLatin, a questão é que novas linhas de raciocínio, na fronteira entre direito e economia, passam a ganhar corpo dentro do antitruste. “Esta postura ajuda a fazer políticas associadas à concorrência e às empresas", diz Luiz Carlos Delorme Prado, professor do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-conselheiro do órgão. Ele, no entanto, alerta que não se deve esperar outras ações além disso: “Não se faz política social com antitruste.”

Tais questões já são levadas a sério em outros conselhos do tipo mundo afora. Em um caso clássico de 2015, a Autoridade para Mercados e Consumidores dos Países Baixos proibiu que grandes empresas produtoras de frango no país se unissem não em termos de mercado, mas em uma produção sustentável de proteína animal, apelidada de “frango do futuro”. 

A medida, que previa um tratamento mais sustentável da criação dos animais, tinha o apoio de parte da sociedade holandesa, em busca do consumo de itens que diminuíssem o impacto na natureza. As autoridades reconheceram, no entanto, que por mais que os competidores reconheçam os ganhos ambientais com o protocolo do “frango do futuro”, ele fatalmente causaria o fechamento do mercado e eventual aumento de preços.

No FTC (Federal Trade Comission), a versão norte-americana do Cade, a nova presidente do tribunal, Lina Khan, já indicou também que, durante sua gestão no órgão até 2024, a abordagem estratégica adotará mais do que os aspectos econômicos de uma operação de mercado. 

Em um memorando enviado ao Congresso, a presidente do tribunal indicou que deve adotar uma abordagem holística sobre danos causados, reconhecendo que violações aos direitos dos consumidores ferem não apenas estes, como também os trabalhadores e negócios independentes. Por isso, ela fala abertamente em rever leis de fusão junto a autoridades competentes.

“As diretrizes anteriores representaram um retrato estreito e datado para fusões, e revisar estas diretrizes é uma oportunidade de acabar com lacunas entre teoria e prática, ajustando a fundação para um trabalho de execução mais eficiente e empiricamente embasado”, escreveu, em inglês.

Em outra manifestação ao Congresso, Lina Khan sugeriu que o Legislativo local fosse ainda mais fundo — e aprovasse leis que garantam a proteção a trabalhadores dentro da legislação antitruste. Ela exemplificou com “legislação garantindo termos e condições para que o trabalho dessas pessoas esteja fora do escopo das legislações antitrustes federais, independente se o trabalhador seja classificado como um empregado”. 

A medida teria como efeito frear a perda de direito causado pela chamada “uberização” das relações de trabalho — e atacaria um dos pontos de maior interesse da economista, que é a melhor atuação sobre as grandes empresas de tecnologia.

Estudiosos como Lina Khan pertencem a uma escola chamada de “New Brandeis”, que traz ao tempo presente o ensinamento de Louis Brandeis, o ex-ministro da Suprema Corte americana que chamou a concentração como “a maldição da grandeza”. A discussão trazida por seus sucessores naturais é que os mercados atuais, comandados por empresas de tecnologia maiores que estados inteiros e donas de informações quase infinitas, precisam de um instrumental diferente para se enquadrarem e um mercado saudável. 

No cenário brasileiro, no entanto, o Cade opera sob regras muito mais estritas. Ao contrário do exemplo dos EUA, há um capítulo inteiro sobre a atividade econômica dentro da Constituição, além de legislações específicas sobre a atuação do conselho administrativo.  “O Cade adota o entendimento de que, ao analisar operações entre empresas, deve focar no seu impacto sobre a livre concorrência, conforme os termos da lei", afirma Maria Eugênia Novis, sócia do Machado Meyer para a área concorrencial.

O sócio do Ana Frazão Advogados, Angelo Prata, vê a novidade do antitruste norte-americano como influente para Washington — já que todas essas preocupações, além dos aspectos econômicos, já estão previstas na Constituição. A busca pelo pleno emprego está no nosso ordenamento pátrio, assim como as funções sociais que as propriedades devem exercer. “É curioso o estranhamento que essas ideias geram no Brasil, visto que o que orienta a aplicação da lei da defesa da concorrência é o artigo 170 da constituição”, comentou o advogado.

Haveria, em sua visão, problemas de ordem prática caso o país tentasse uma abordagem mais ousada —  o pior deles seria tentar imitar demais os Estados Unidos. “Assim, deixaremos de lado a construção de uma experiência de direito da concorrência baseada na Constituição”, disse.


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O professor e ex-conselheiro Luiz Carlos Delorme Prado reitera que, por mais que os objetivos de uma sociedade mais eficiente e justa sejam desejáveis, a plataforma antitruste não é o local correto para o debate. “Há que se tomar cuidado com o que se dá pra fazer. A intervenção do antitruste é sempre pontual”, diz. “Ela tenta controlar excesso de mercados, cartéis, abusos de poder econômicos e concentrações em determinadas circunstâncias — mas ela não resolve tudo.”

Sem políticas públicas que cuidem de questões paralelas à economia, não seria o Cade o responsável por melhorar sozinho o conjunto da economia. “O Mercado é um instrumento do Estado organizado para promover o bem-estar de sua população”, conclui o professor. “A concorrência é um bem instrumental — e vamos usá-la só quando ela produz os resultados esperados.”

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