O Telegram na mira da justiça brasileira

Empresa de origem russa não tem pessoa jurídica no Brasil. Nos esforços pré-eleição, foi a única rede relevante a não comparecer/Pixabay
Empresa de origem russa não tem pessoa jurídica no Brasil. Nos esforços pré-eleição, foi a única rede relevante a não comparecer/Pixabay
Empresa é terreno sem regulação na campanha eleitoral - e o TSE sabe disso.
Fecha de publicación: 18/02/2022

Quem defende o uso do aplicativo Telegram tem para si o forte argumento de que a rede social tem mais vantagens que o Whatsapp, seu principal concorrente: uma arquitetura diferente permite uma maior facilidade em comunicar com grupos maiores de pessoas; o uso de robôs automatizados permite que áudios sejam transcritos com facilidade, ou que arquivos sejam baixados diretamente no celular. 

Mas isso não esconde um grave problema do aplicativo de origem russa: a falta de diálogo com as autoridades de quase todo o mundo para coibir discursos enganosos ou mesmo proibidos. No Brasil, esse problema deve ser potencializado nas eleições de outubro deste ano, já vistas em um cenário de alta polarização e com alta produção e consumo de notícias falsas, assim como foi em 2018.


Leia também: Proteção de dados como direito fundamental: O que muda?


Algumas autoridades já começam a subir o tom contra a empresa russa - que, ao contrário dos seus concorrentes, não têm uma pessoa jurídica ou representação no país, ignorando convites para se manifestar sobre o tema. O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, elevou as críticas ao aplicativo em seu último mês como presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), concluído nesta semana. 

Nesta semana, o ataque foi em tom de ultimato: se o Congresso não agir em relação ao combate às fake news, caberá ao Judiciário atuar com a força necessária no Telegram para preservar as eleições.“Desejavelmente, esta é uma decisão que conviria o Congresso tomar”, disse, em entrevista à GloboNews.

“Porém, nesta e em muitas outras situações, quando o Congresso não atua e surge uma questão perante o poder Judiciário, o poder Judiciário tem que decidir. O que não pode é o Congresso não agir e depois reclamar da judicialização.” 

Para entender melhor a situação envolvendo o Telegram, a LexLatin conversou em condição de anonimato com duas pessoas que atuam diretamente no TSE, seja no dia-a-dia da corte, seja em consultoria a temas da corte.

Ambos apontam uma necessidade em comum: é preciso colocar as atividades do aplicativo em ordem com a Lei brasileira, e o problema é maior que o estrago que pode ocorrer em eleições.

O problema da falta de atuação do Telegram no ambiente brasileiro iria mais profundo do que as fake news - como não há moderação nenhuma de conteúdo, há a possibilidade de acesso a temas proibidos (uma breve pesquisa no aplicativo mostra canais que veiculam propaganda nazista, o que é proibido no Brasil). Com isso, a empresa não indica também como são tratados os dados dos usuários, o que gera conflitos diretos com o Marco Civil da Internet.

Por isso, defende uma fonte no TSE, que a ação não deveria ser tomada pelo tribunal, e sim por outras instâncias - uma vez que os problemas que o Telegram representa continuariam após o final da eleição. A proposta é levantada pelo ministro Barroso, que disse que o STF possui condições de tratar do tema de maneira ampla. 

O fato de a empresa não estar no Brasil não necessariamente torna a atuação do poder público impossível, uma vez que acordos internacionais poderiam resolver a questão. O que mancha a reputação da empresa, na visão de uma das fontes do TSE, é que o aplicativo tem se recusado a corresponder a comunicação das autoridades brasileiras sobre o tema. 

A postura não é exclusiva com Brasília: apenas em um caso, na Alemanha, o Telegram concordou em conversar com as autoridades e restringir o uso de 70 contas que transmitiam informações falsas. “E, nesse caso, quem é o Brasil na fila do pão?”, questiona outra das consultadas.

Há um risco de operação ser vista como “partidária” por apoiadores do presidente da República Jair Bolsonaro (PL), que nada de braçada neste universo: com 1,052 milhão de seguidores até esta sexta-feira (18), o canal é 22 vezes maior que o canal de Lula, que tem 47 mil seguidores. Os filhos de Bolsonaro, assim como nomes de polemistas ligados à extrema-direita, são mais presentes na rede, que não modera o seu conteúdo, e permite uma entrega de conteúdo mais direta que o Whatsapp.

Mas um bloqueio do aplicativo em território nacional, como já proposto em certo momento por Barroso, parece mais difícil e menos eficaz. Uma das alternativas envolveria a indisponibilidade de uso do aplicativo mediante parceria com a Google (que gerencia o sistema Android) e a Apple (responsável pelos modelos de iPhone). Isso, no entanto, proíbe apenas novos downloads, deixando o uso livre pelo computador e também de aparelhos que já possuam o programa. Bloquear o acesso aos servidores do Telegram seria uma segunda proposta, mas a Internet já sabe muito bem como contornar tais barreiras.

O discurso enganoso voltado às eleições - foco do TSE neste momento - pode também se espraiar para outros cantos. Em plataformas como Instagram, Facebook, Whatsapp, Twitter, Facebook e YouTube, a preocupação é menor, já que as empresas responsáveis mantém comunicação constante com as autoridades brasileiras. Até redes como o Kwai e o TikTok, de origem chinesa e entrada mais recente no mercado brasileiro, aderiram à proposta de combater o discurso enganoso.

Por isso, não é estranho que candidatos como Bolsonaro e parte mais inflamada dos que concordam com seu discurso tenham aberto conta no Gettr, rede social de origem americana que preza pela máxima liberdade de expressão, sem nenhum tipo de filtro ou restrição. Uma potencial fake news contra concorrentes do bolsonarismo poderia ficar eternamente exposta aos 626 mil seguidores dele na rede social.


Veja também: O que diz a lei brasileira sobre os cigarros eletrônicos


Por isso, aponta um dos entrevistados, “o Telegram é só a bola da vez”. Para outra pessoa ouvida, é passada a hora das autoridades impedirem uma dita “liberdade ampla e irrestrita de expressão”, que amplifica vozes que sequestram o debate público com mera polemização, em busca especificamente de monetização por parte das plataformas.

“Estamos assumindo uma posição extremamente libertária, e isso não é bom”, adverte. “Como a Internet dá muita voz para quem mexe com algoritmos e dá audiência, é muito diferente da liberdade de expressão de antes. A gente não pode achar que a liberdade de expressão que vínhamos aplicando até os anos 2000 é a mesma de agora. Não é.” 

Add new comment

HTML Restringido

  • Allowed HTML tags: <a href hreflang> <em> <strong> <cite> <blockquote cite> <code> <ul type> <ol start type> <li> <dl> <dt> <dd> <h2 id> <h3 id> <h4 id> <h5 id> <h6 id>
  • Lines and paragraphs break automatically.
  • Web page addresses and email addresses turn into links automatically.