Quem pode ser responsabilizado por tragédias como a de Petrópolis?

Com 231 mortes registradas, cidade fluminense teve pior chuva desde 1932/Agência Brasil
Com 231 mortes registradas, cidade fluminense teve pior chuva desde 1932/Agência Brasil
Entenda as questões legais de acidentes relacionados a catástrofes naturais com dezenas de mortos.
Fecha de publicación: 18/02/2022

Em mais um capítulo das tragédias anunciadas no Brasil, a cidade de Petrópolis, na região serrana do Rio, foi devastada pelo maior volume de chuva desde 1932. Agora em que se contam as dezenas de mortos (234 até agora) a pergunta que fica é: de quem é a culpa? É claro que nem sempre dá para prever uma situação extrema da natureza, cada vez mais comum com o aquecimento global, mas seria possível salvar as vidas dessas pessoas?

Essa é uma história que tem relação com as políticas públicas implantadas pelas administrações não só de Petrópolis, mas de como governos municipais, estaduais e federal nem sempre se preocupam com o trabalho de prevenção, apesar de riscos bem conhecidos pelas autoridades.


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No caso de Petrópolis, uma cidade erguida entre encostas de morros, outras tragédias que aconteceram no passado já deveriam ter servido de lição para as autoridades locais. Uma história que é a repetição de 2011, quando foram registrados 74 mortos e 30 desaparecidos. Em 1998, outro desastre natural matou 134 pessoas, também vítimas de deslizamentos de terras.

Mas a ameaça, que é permanente nas encostas da cidade, sempre é minimizada na medida em que o assunto cai no esquecimento. De acordo com o Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR), Petrópolis tem 234 áreas de alto risco relacionadas a enchentes e deslizamentos. São 12 mil residências nessa situação em quase 20% do território.

Apesar das evidências, o governo de estado do Rio gastou menos da metade do que foi prometido em programas de prevenção e resposta a desastres em 2021: foram R$ 193 milhões. Outros R$ 215 milhões simplesmente não foram utilizados. Em entrevista, o governador Cláudio Castro (PL) disse que o "déficit histórico" no trabalho de prevenção não será suficiente para mudar a história da cidade no curto prazo. "Não se resolvem 20, 30, 40 anos em um ano", afirmou.

Em meio a essa discussão, o que dizem advogados em direito penal e de meio ambiente sobre o assunto?

Acidentes naturais, como aqueles causados por fortes chuvas ou ventos, podem ser considerados como caso fortuito ou força maior. A princípio, são eventos imprevisíveis e inevitáveis e, por isso, afastam a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros.

Segundo os especialistas, a análise das consequências jurídicas em desastres ambientais, como ocorre em Petrópolis, muito embora seja complexa e demande diversos aspectos para responsabilização dos culpados e adoção de medidas saneadoras, deve passar pela legislação já existente: Código Florestal, Estatuto da Cidade, Lei de Parcelamento do Solo Urbano, Política Nacional de Proteção e Defesa Civil.

“Assim, são dispensadas para efeito de responsabilização civil do Estado as causas de excludente do nexo de causalidade, como o caso fortuito, força maior, fato de terceiro ou culpa exclusiva da vítima. Portanto, ainda que se considere o impacto da ocupação de áreas de risco pelas vítimas, há que se levar em conta que tal situação é tolerada e, por diversas circunstâncias, incentivada pelo poder público como um todo ", analisa Romulo Santana, advogado do RMS Advogados.

Para Camila Prado, sócia da área de seguros e resseguros do Demarest Advogados, caso fique comprovada a omissão do poder público, as vítimas e seus familiares podem ingressar com ações judiciais de reparação de danos tanto individuais como coletivas contra o município e o estado. “Considera-se a competência constitucional de ambos na preservação do meio ambiente e a omissão na prevenção do evento. Assim como contra a União, em face da competência privativa para planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente inundações”, avalia a advogada.

Alexandre Burmann, especialista em direito ambiental do escritório Daniel Gerber Advogados, reforça a ideia de que o poder público tem grande parcela de responsabilidade ao permitir que essas ocupações ocorram sem o controle adequado. “Ao não avaliar adequadamente os locais que poderiam ter risco (planejamento); ao não atuar preventivamente para evitar as construções; e, posteriormente, ao não usar do seu poder de polícia para retirá-los do local”, diz.

O advogado avalia que empreendimentos construídos sem o cumprimento das normas e os devidos cuidados em relação às possíveis áreas de risco também poderão ser responsabilizados.

“Quando tratamos de responsabilidade civil ambiental, não há excludente desta responsabilidade em caso de evento da natureza, caso fortuito ou força maior. Em tese, basta a ocorrência de ação/omissão, a prova do dano e a relação (nexo causal) entre o dano e a ação/omissão para gerar a obrigação de reparar este dano. É a teoria do risco integral, que imputa a responsabilidade em reparar o dano independentemente de culpa/dolo do agente causador, seja de forma direta ou mesmo indireta”, afirma.

Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues, sócio-fundador do Pisco & Rodrigues Advogados, explica que a situação já foi alvo de discussão das instâncias superiores. “O Superior Tribunal de Justiça, em algumas ocasiões, analisou a responsabilidade civil do município em razão de prejuízos decorrentes de fortes chuvas e enchentes. Em que pese a responsabilidade do Estado ser objetiva, entende-se que nesse caso deve estar demonstrada a omissão da prefeitura quanto a condutas para evitar ou mitigar os danos oriundos das chuvas. Até mesmo porque fortes chuvas anômalas - e este é um precedente do STJ - não autorizam a responsabilização do município”.


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Sob o ponto de vista de improbidade administrativa, explica o advogado, “além dessa omissão estar configurada, deve ser demonstrado o dolo do gestor em, sabendo das medidas que deveria adotar, intencionalmente deixa de adotá-las assumindo o risco dos danos”. Assim, o que aconteceu pode ser objeto de uma investigação para apurar possível ato de improbidade.

O problema dessa história, de acordo com os especialistas, é que ações de responsabilização do Estado brasileiro ficam anos, até décadas na justiça. E quando sai o resultado, muitas vezes os responsáveis pelo dano e as vítimas já morreram.

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