Uma nova fronteira no Direito: a herança digital

Nova realidade envolve conteúdos de qualidade patrimonial e contas ou arquivos digitais/ Quoteinspector.com
Nova realidade envolve conteúdos de qualidade patrimonial e contas ou arquivos digitais/ Quoteinspector.com
Projeto de Lei apresentado na Câmara dos Deputados quer alterar Código Civil para garantir aos herdeiros os ativos eletrônicos de natureza econômica.
Fecha de publicación: 11/05/2021

Por um lado, a pandemia de Covid-19 transformou 2020 no ano com mais mortes no Brasil. Por outro, já éramos mais de 180 milhões pessoas com acesso à Internet, segundo a PNAD-C (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua) do IBGE. As duas realidades colidem em cada vez mais pontos e a possibilidade de sucessão de ativos que ficam online após a morte já chama a atenção de parlamentares no Congresso Nacional.

No final de março, a deputada Renata Abreu, do Podemos de São Paulo, apresentou o Projeto de Lei 1.144/2021, que busca regulamentar a possibilidade de sucessão dentro do Código Civil de 2002. O texto foi anexado, nesta terça-feira (11), a outro projeto de Lei na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara que trata de temática semelhante.


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O texto do PL 1.144 vai além do texto do qual foi anexado: enquanto o original altera apenas o artigo 1.788 do Código Civil para garantir a transmissão aos herdeiros "todos os conteúdos de qualidade patrimonial, contas ou arquivos digitais", o novo texto indica temas como a legitimidade para requerer reparação de imagem, assim como garantir qual o escopo da herança poderá ser transmitida, bem como uma nova redação para ativos eletrônicos de natureza econômica.

A proposta passa a garantir, como herança, "os conteúdos e dados pessoais inseridos em aplicação da Internet de natureza econômica". Tal definição, se incluída no Código Civil, passaria a incluir, por exemplo, contas de redes sociais que gerem monetização, tais como canais de YouTube e contas de Instagram de marcas. A transmissão de mensagens privadas trocadas em plataformas digitais só é contemplada quando houver relação direta com a atividade financeira.

Há também propostas de alteração no Marco Civil da Internet, transformado em Lei em 2014. O texto busca obrigar provedores de aplicações de internet a excluir as contas públicas de usuários brasileiros mortos, mediante comprovação do óbito. Apenas se houver previsão em contrário, poderá se manter os dados no ar, sem que o herdeiro tenha acesso a alterar os dados. Em caso de exclusão das contas, os dados devem ser mantidos pelos provedores por pelo menos um ano.

Ao justificar o texto, Renata Abreu defendeu a regulamentação do tema. "Em que pese o esforço legislativo realizado pelo Congresso Nacional nos últimos anos em conferir tutela jurídica adequada aos mais diversos interesses que emergem dessas novas relações sociais, como a aprovação do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), os aspectos da personalidade relacionados a contas digitais demandam regulamentação específica sobre sua destinação ou modos de uso após a morte do titular dos dados", escreveu. 

A sócia do Deborah Toni Advocacia, Anna Oliveira, concorda com a existência de um limbo sobre o tema. "Com a evolução da tecnologia, houve uma ressignificação das formas de compartilhamento de informações entre os indivíduos e, com a internet, permitiu-se a criação de um acervo patrimonial digital", explicou. Para a advogada, mesmo sem lei, há certa pacificação quanto à tese que os bens precisam ser transmitidos – por mais sentimentais e íntimos que possam ser: "A transmissão desses bens parece mais complexa, pois esbarra nos direitos à intimidade, à privacidade e ao sigilo do titular e, eventualmente, de terceiros", completou.

A sócia fundadora do escritório LCS Consultoria e Advocacia, Andrea Costa, defende que familiares e cônjuges devem ser os herdeiros naturais de bens móveis e imóveis, mesmo que não haja a previsão do falecido para que isso ocorra. "Assim, a ausência de testamento não interfere nos direitos dos herdeiros necessários", disse.

Rafael Stuppiello, advogado da área de Planejamento Patrimonial e Sucessório do Machado Meyer, também acredita que o conceito sobre a "herança digital" não está sólido e há uma longa discussão a ser travada. 

Um ponto considerado temerário pelo advogado é a possibilidade de dar direito à defesa da imagem do falecido "a qualquer pessoa com legítimo interesse"– esta legitimidade foi considerada aberta demais. "Porque irá gerar uma discussão enorme lá na base sobre se é legítimo ou não, ou o que irá legitimar este interesse", advertiu o advogado. "Em vez de qualquer pessoa com interesse, poderia ser 'pessoa expressamente nomeada pelo falecido' – porque 'legítimo interesse' é muito subjetivo, e isso tira um pouco da segurança jurídica".


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Para o advogado, o PL traz luz ao debate – mas ele também precisa, em sua opinião, evoluir do ponto de vista conceitual.  "Uma das questões é a necessidade de testamento, assim como a conexão desta nova Lei com a LGPD e com contratos firmados com provedores. Há a discussão do que seria, e de como seria. É necessário um testamento digital para meu legado virtual? E se não houver?", questionou, "porque, da minha experiência com planejamento sucessório, testamento é uma coisa muito rara no Brasil – não temos essa cultura de planejar essa sucessão."

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