Policiais youtubers: a espetacularização do processo penal

Policiais youtubers poderão ser punidos pelo crime de peculato/Pixabay
Policiais youtubers poderão ser punidos pelo crime de peculato/Pixabay
Monetização desses canais fez com que agentes públicos passassem a ganhar grandes somas de dinheiro.
Fecha de publicación: 11/10/2021

Nos últimos dias foi divulgado pela imprensa o caso de delegado da Polícia Civil de São Paulo que teria supostamente forjado operações policiais, inclusive "devolvendo" um sequestrado ao cativeiro e ao seu algoz, com a finalidade de produzir vídeos para o YouTube.

A punição do servidor pela gravíssima conduta depende que o Ministério Público efetivamente comprove os fatos após o devido processo legal. Contudo, essa espetacularização desmedida da atividade policial suscita diversos debates jurídicos no campo penal, inclusive com relação à prática do crime de peculato pelos agentes.

É certo que o processo penal sempre atraiu a atenção da opinião pública. A dinâmica insidiosa dos crimes, a personalidade dos criminosos e a combatividade do processo penal são, desde de tempos imemoráveis, objetos do interesse da população em conhecer cada detalhe da trama criminosa e do seu julgamento.


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Com o surgimento da mídia de massa, como o rádio e a televisão, passou-se a espetacularizar o processo penal, com a exibição incessante de notícias sobre crimes e sobre o julgamento de processos criminais, tudo como forma de atrair um público cada vez mais sedento pelas manchetes sobre crimes escabrosos e sobre a dialética do seu julgamento.

Porém, com o avanço das tecnologias móveis e com a popularização das mídias sociais como o YouTube, surgiu um novo fenômeno: os "policiais youtubers". Policiais que, pelas lentes das suas câmeras, gravam a dinâmica das operações, fazendo com que pareçam cenas tiradas de filmes de ação. E, com o interesse crescente da população por essa espécie de conteúdo policialesco, veio a monetização desses canais, fazendo com que esses agentes públicos, civis ou militares, passassem a ganhar grandes somas de dinheiro.

Canais de policiais que, no início, tinham apenas a intenção de informar e orientar a população sobre as atividades da Polícia Militar ou da Polícia Civil, se tornaram na fonte primária de renda desses servidores, fazendo com que surgisse o debate a respeito do cometimento eventual crime de peculato.

O crime de peculato, previsto na norma do artigo 312 do Código Penal, pune com pena de dois a doze anos de detenção aquele funcionário público que se apropria de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse ou detenção em razão do cargo, ou o desvia em proveito próprio ou de outrem.

Pune-se, também pelo crime de peculato, o servidor público que, embora não tendo a posse ou detenção do dinheiro, valor ou bem, o subtrai ou concorre para que seja subtraído por terceiro.

No caso dos policiais youtubers, o debate diz respeito a um possível desvio de bens públicos, como veículos, armas de fogo e, inclusive, do trabalho de outros colegas policiais subordinados, para a gravação dos vídeos monetizados, naquilo que se denomina "peculato-desvio".

Ocorre, contudo, que se o policial apenas grava a sua atuação como, por exemplo, numa abordagem, ainda que ele esteja utilizando veículo e arma de propriedade da corporação, não haverá como se falar no cometimento do crime de peculato, pois não há desvio desses bens públicos já que a atividade policial está sendo exercida regularmente.

Situação diversa ocorre quando o policial utiliza veículo e arma da polícia com a finalidade de simular uma operação para postá-la em seu canal do YouTube. Há desvio desses equipamentos para finalidade pessoal, o que faz com que a conduta seja tipificada como crime de peculato na modalidade peculato-desvio.

E, para a configuração do crime, não é nem mesmo necessário que o agente policial monetizasse seu vídeo ou receba qualquer valor, bastando que o desvio ocorra em proveito próprio, podendo esse "proveito" ser meramente moral, como o recebimento de curtidas ou o aumento do número de seguidores na rede social. A eventual monetização apenas torna mais evidente o benefício pessoal.


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De mesma forma, e ainda mais grave, há o crime de peculato na modalidade peculato-desvio quando o agente público emprega seus subordinados na realização da operação simulada. Com este ato, além do evidente constrangimento dos subalternos que se veem obrigados a fazer as vontades do superior, o agente público está desviando o tempo, a hora de trabalho desses agentes que deveriam estar servindo a população e não a interesses pessoais, sejam eles financeiros ou não.

Para arrematar a questão, aliás, a conduta é similar a de prefeito municipal que, utilizando-se de tratores e funcionários da prefeitura, pavimenta estrada em sua fazenda particular. Se não há dúvida que essa conduta configura crime de peculato, também não há dúvida que configure nas operações simuladas feitas pelos policiais youtubers.

Sendo assim, para além de eventuais punições administrativas, os policiais youtubers poderão ser punidos pelo crime de peculato quando se utilizarem de bens públicos para a gravação de operações simuladas a serem postadas no YouTube, independentemente de eventual monetização.


*Matheus Falivene é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP.

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