De volta aos tempos da ditadura: civis podem ser julgados pela Justiça Militar?

Supremo Tribunal Federal julgará tema na ADPF 826/ Isac Nóbrega/PR
Supremo Tribunal Federal julgará tema na ADPF 826/ Isac Nóbrega/PR
Discussão passa pela liberdade de imprensa e direito de criticar Forças Armadas.
Fecha de publicación: 22/06/2021
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O Plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) terá, pela frente, uma discussão complexa que remonta à própria origem da Constituição: a possibilidade de que a Justiça Militar julgue civis pelos chamados “crimes contra a honra” das Forças Armadas. O tema é o centro da discussão da ADPF 826, apresentada em abril na Corte pela Associação Brasileira de Imprensa, e coloca o Supremo na missão de regular as vontades de Exército, Marinha e Aeronáutica.

A arguição foi apresentada pela Associação Brasileira de Imprensa, que pede uma afirmação maior da proteção à atividade de jornalismo no país. A ABI faz dois pedidos originais: o primeiro deles é para que, salvo na hipótese de fabricação e propagação sistemática de notícias falsas, seja considerada inconstitucional a aplicação dos artigos 138 (calúnia) e 139 (difamação) do Código Penal, quando o ofendido for servidor ou instituição publica.


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A ABI indica que sua ADPF foi motivada por um agravamento das condições de trabalho da categoria, que no Brasil são cada vez mais perseguidos por parte da classe política. “Nesse novo contexto, a persecução criminal, em conjunto com as estratégias acima mencionadas, pode produzir grave efeito silenciador”, escreve Luís Guilherme Vieira, que assina a petição. ”Os pequenos órgãos de imprensa e jornalistas independentes que atuam em ambiente digital dificilmente podem fazer frente ao assédio sofrido por meio do ajuizamento de ações e da instauração de inquéritos policiais."

O segundo pedido - o de afastar a Justiça Militar dos julgamentos por crimes de honra cometidos contra militares - gerou as reações mais inflamadas. A Advocacia-Geral da União se colocou contra a proposta. “No que concerne à possibilidade de civis cometerem crimes militares, por meio de atos que atentem contra as instituições militares, deve-se destacar a especificidade do objetivo do Direito Penal Militar, vez que a caracterização de um fato típico penal castrense, praticado por civil, ocorre nas situações em que a ação atinja as Forças Armadas”, avaliou a AGU. “Portanto, quando a conduta do civil ofende as instituições militares, é considerada crime militar, cujo julgamento compete à Justiça Militar da União.”

O entendimento do órgão, que representa a Presidência da República na Corte, é uma versão menos carbonária dos subsídios dados por Exército, Marinha e Aeronáutica, que se colocaram terminantemente contra a hipótese de julgamento fora da Justiça Militar. 


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De pronto, sublinha-se que o autor da inicial, indiretamente, parte do princípio que a apuração de todo e qualquer suposto crime praticado por civil na Justiça Militar será realizada de forma parcial. Ou seja, põe em descrédito o funcionamento da Justiça Militar (que é uma das mais antigas do Brasil e é composta por profissionais de ímpar capacidade técnica)", indica o Exército em sua manifestação, que continua: “Não se pode aceitar que ações jornalísticas, sob o prisma da liberdade de expressão e do direito à informação, acobertem eventuais excessos que possam configurar práticas criminosas, pois os princípios citados pelo autor na inicial não são absolutos."

A nota técnica do Exército termina de maneira categórica: "Ademais, todos, sem exceção, devem respeitar as normas previstas na República Federativa do Brasil."

A linha tênue sobre crimes de honra contra militares poderia, em última instância, resultar no mesmo “efeito silenciador” que reclama a ABI. Recentes reportagens da imprensa que indicaram gastos superfaturados do Exército Brasileiro na compra de toneladas de carnes nobres e iguarias para os soldados poderiam ser encarados como crimes contra a honra e julgados exclusivamente em cortes militares.

Sócia do Cecilia Mello Advogados e ex-juíza federal, Cecilia Mello entende que a tese tem de ser formada levando em consideração se a conduta do jornalista tem capacidade para atingir as Forças Armadas especificamente. “Se houver, em tese estaremos falando de crime subsumível à Justiça Militar”, pontua.

“O crime militar - passível de ser cometido tanto por militares como por civis – somente resta caracterizado quando há um enquadramento preciso em relação às circunstâncias previstas em lei”, lembra a advogada, se valendo do artigo 9º do Código Penal Militar. “E a jurisprudência do STF segue na linha de dar interpretação restritiva ao dispositivo, de maneira que apenas na hipótese em que as instituições militares são atingidas é que haveria em tese a caracterização de um crime militar praticado por civil.”

Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues, mestre em Direito Constitucional pelo IDP e sócio fundador do Pisco & Rodrigues Advogados Associados considera que o sistema brasileiro ainda precisa de uma Justiça Militar nos dias atuais. “Devemos lembrar que não são apenas os militares do Exército, Marinha e Força Aérea que se submetem às regras militares. Nos estados e no Distrito Federal, as polícias militares também se sujeitam ao Código Penal Militar. Assim, é importante essa especialização da Justiça para que tenham um processo justo”, afirma. Joaquim reitera que o Supremo Tribunal Federal é “um Tribunal comum, portanto, sempre poderá ser acionado em caso de desrespeito à Constituição.”


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Na teoria, a Justiça Militar serviria justamente para impedir que as Forças Armadas venham a se tornar uma ameaça à democracia e suas instituições, afirma o criminalista André Damiani, sócio fundador do Damiani Sociedade de Advogados. Para ele, a decisão que o Supremo tomar não pode ser apenas voltada para a proteção de uma das partes. “Se por um lado não se pode tolerar qualquer tipo de censura, por outro lado não cabe ao STF estabelecer uma excludente de ilicitude geral para todo e qualquer crime contra a honra eventualmente praticado num contexto jornalístico”, diz.

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