Prisão domiciliar e Covid-19: um apelo humanitário aos tribunais

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Em um cenário pandêmico, com altíssimo grau de contaminação por contato pessoal, políticas desencarceradoras são indispensáveis.
Fecha de publicación: 23/04/2020
Etiquetas: direito

A cada dia, novos estudos e informações são divulgados sobre a situação que, em poucos meses, alterou a realidade da grande maioria dos países: o alastramento da Covid-19 em escala global e seu reconhecimento como pandemia pela Organização Mundial da Saúde no dia 11 de março de 2019

 

Em que pesem as diversas opiniões médicas e científicas, há um consenso de que o isolamento social é uma medida eficaz e necessária contra a proliferação do vírus, uma vez que os sistemas de saúde dos mais diversos países apresentam importantes dificuldades em atender à alta demanda de testagem e de internação, bem como em prover equipamentos médicos em quantidade suficiente, desde equipamentos de proteção individual (EPI’s) a respiradores mecânicos. 

 

A situação, portanto, clama por uma responsabilização solidária de todos os entes estatais e da população como um todo, diante da maior crise de saúde vivida nos últimos cem anos pela humanidade. Nesse cenário, ao Poder Judiciário é delegada a função indispensável de ponderar em suas decisões a necessidade urgente de proteção do direito à saúde, recepcionando argumentos científicos e médicos para que sua atuação some forças e não desestabilize as políticas de prevenção em curso.

 

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a Recomendação nº 62/2020 que, além de estabelecer medidas para a manutenção do funcionamento dos tribunais, no contexto da pandemia, orienta a adoção de medidas preventivas contra o aumento da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.

 

Dentre essas medidas, destaca-se a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar e a antecipação da progressão para os regimes semiaberto e aberto, possibilitando que integrantes dos grupos de risco, como gestantes, lactantes, tuberculosos, hipertensos, diabéticos, entre outros, possam cumprir sua pena em suas respectivas residências enquanto perdurar a situação emergencial gerada pela Covid-19.

 

Em um cenário pandêmico, com altíssimo grau de contaminação por contato pessoal, políticas desencarceradoras são indispensáveis, ainda mais tratando-se do sistema penitenciário brasileiro, em que grande parte dos presídios se encontram superlotados, com ocupação em média 70% superior à sua capacidade, com acesso precário à saúde e onde 41,5% da população encarcerada está em prisão provisória.

 

Cabe destacar que em 2015, o Supremo Tribunal Federal declarou o “estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro”, reconhecendo sua precariedade e as diversas violações de direitos humanos sofridas pelos detentos diariamente.

 

Assim, a chegada do novo Coronavírus aos presídios brasileiros é uma tragédia anunciada: no dia 31 de março, eram 74 casos suspeitos em presídios no Brasil; no dia 8 de abril foi confirmado o primeiro caso no Ceará. No dia 13 de abril, faleceu um detento de Sorocaba, São Paulo, com suspeita de Covid-19 e no mesmo dia faleceu o primeiro agente penitenciário em Presidente Prudente, no estado de São Paulo. No dia 17 de abril foi confirmado o primeiro caso e também a primeira morte no Estado do Rio de Janeiro, de forma que essas situações pontuais tendem a se proliferar rapidamente.

 

Ao que tudo indica, devido à precariedade das condições de higiene e saúde nas penitenciárias brasileiras, a situação não “está sob controle” e as consequências são incalculáveis. A superlotação dos presídios aumenta o risco de contaminação massiva, o que poderá ainda resultar em uma elevadíssima mortalidade, devido à dificuldade de acesso a cuidados médicos pelos detentos, agravada pelo gradativo saturamento do sistema de saúde na situação pandêmica.

 

Além disso, o contato de detentos contaminados com servidores públicos e terceirizados que trabalham dentro das unidades prisionais pode resultar em contaminação extramuros.

 

Sendo assim, é preciso evitar o incremento da população carcerária e, para além disso, buscar medidas de reduzi-la, resguardando-se especialmente pessoas em grupo de risco. A urgência da crise em saúde que está posta demanda do judiciário um papel ainda mais ativo, em que o direito à saúde deve ser pesado em detrimento da restrição de liberdade dos detentos.

 

Isto deve ser feito tendo como baliza as recomendações do Conselho Nacional de Justiça pela substituição das prisões preventivas e de penas cumpridas em regime aberto pela prisão domiciliar como definem, respectivamente, o art. 318 do Código de processo penal e o art. 117 da Lei de Execução Penal.

 

A prisão domiciliar é uma alternativa à pena privativa de liberdade que pode ser aplicada, cautelarmente, em substituição à prisão provisória e durante a execução penal quando do cumprimento do regime aberto. Na situação atual, contudo, por força do risco de alastramento da doença e do risco gravíssimo à saúde dos presos, demanda-se uma interpretação ampliativa dos requisitos legais, tendo como parâmetro a recomendação do CNJ e as recentes decisões dos Tribunais Superiores.

 

O Superior Tribunal Federal (STF), na decisão nos autos da ADPF 347/DF, sugeriu aos juízos da execução penal que, com o apoio necessário dos tribunais de justiça e regionais federais, apliquem o regime domiciliar às gestantes e lactantes, na forma da Lei. Nº 13.257/2016; aos soropositivos para HIV, diabéticos, portadores de tuberculose, câncer, doenças respiratórias, cardíacas, imunodepressoras ou outras suscetíveis de agravamento a partir do contágio pelo Covid-19; e a presos por crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, em razão da pandemia causada pelo Covid-19.

 

Além disso, o STF conclama os magistrados a revisarem as prisões cautelares e também a considerarem a Covid-19 na tomada de decisões a respeito de novas prisões.

 

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos autos do habeas corpus nº 570.398/PR, foi fixado importante precedente, seguindo a orientação do CNJ, para que os juízos penais da fase de conhecimento observem as “prisões preventivas que tenham excedido o prazo de 90 (noventa) dias ou que estejam relacionadas crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa”, nos termos do artigo 4º, alínea c” da recomendação.

 

Além disso, há uma importantíssima decisão do Ministro Sebastião Reis, do dia 1º de abril, que estendeu para todo o país os efeitos da liminar que determinou a soltura de todos os presos cuja liberdade provisória esteja condicionada ao pagamento de fiança.

 

A recomendação do CNJ, bem como as decisões apresentadas acima, dão aos magistrados fundamentação jurídica necessária para que a atuação dos tribunais consiga atender de forma adequada o risco de proliferação da Covid-19 nas unidades penitenciárias brasileiras.

 

Estima-se que, até o momento, por volta de 6 mil detentos foram transferidos para a prisão domiciliar. Ressalta-se que ainda há muitos casos a serem revistos e presos que devem ser transferidos nas próximas semanas.

 

Destaca-se a iniciativa do Tribunal de Justiça (TJ) do Estado de Minas Gerais ao editar a portaria conjunta nº 19/PR-TJMG que recomendou que todos os presos condenados em regime aberto e semiaberto fossem transferidos para prisão domiciliar, com exceção daqueles que estejam respondendo a processo por falta disciplinar grave. A portaria recomendou ainda a revisão de todas as prisões cautelares no Estado para aplicação de medidas alternativas à prisão.

 

Por outro lado, observa-se ainda resistência por parte dos tribunais dos estados de Goiás, Pará, Paraná, Rondônia, Rio Grande do Sul e São Paulo à aplicação das orientações do CNJ e dos tribunais superiores. A este ponto, levante-se grande preocupação, em especial, sobre o estado de São Paulo, o mais populoso da federação que, consequentemente, possui o maior número de detentos em termos absolutos, superior a duzentos e trinta mil detentos e com um déficit de mais de 90 mil vagas.

 

Estima-se ainda que 9% de todos os detentos no estado sejam idosos ou doentes, dentre eles, 87% estão em presídios superlotados e quase metade em locais sem sabonete.

 

A realidade do sistema penitenciário, portanto, está escancarada e o judiciário não pode mais se mostrar inerte diante dessas graves violações a direitos fundamentais. Se antes os detentos conseguiam sobreviver, hoje há um risco iminente de que muitos deles tenham sua pena privativa de liberdade convertida em verdadeira pena de morte com o alastramento em massa da Covid-19 nas unidades prisionais.

 

É evidente que não se trata de soltar presos indiscriminadamente ou de “abrir as portas das cadeias”. As decisões estão sendo tomadas, e assim devem continuar, com base na Recomendação do CNJ, bem como no que estabeleceram os tribunais superiores.

 

É preciso atentar para a realidade expressa nos dados numéricos: as decisões até então beneficiaram cerca de 6 mil detentos em um universo de mais de 700 mil, os quais, atendendo aos requisitos listados (detentos pertencentes ao grupo de risco, que já cumpriram de um sexto a dois terços de sua pena em estabelecimento prisional e  praticaram crimes sem violência) foram transferidos para um outro regime de cumprimento de pena em domicílio com monitoramento eletrônico e não simplesmente postos em liberdade.

 

A recomendação do CNJ e as decisões dela decorrentes confrontam a tendência encarceradora do nosso sistema de justiça e os discursos punitivistas fervorosos dos mais diversos setores da sociedade, consubstanciada na visão de que a pena privativa de liberdade é a única pena prevista em nosso sistema penal.

 

Porém, nessa queda de braço, somente a dignidade da pessoa humana e o direito à saúde podem sair vencedores.  Afinal, ao serem encarcerados, os presos podem ter tido sua liberdade de circulação limitada, jamais o seu direito a vida negado.

 

Nesse momento, diante de um sistema prisional tão desumano, a adoção da prisão domiciliar é uma medida de humanidade. O “estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro” foi reconhecido na ADPF 347/DF em 2015.

 

Estamos em 2020 e efetivamente pouca coisa mudou. Esperemos que, diante da pandemia da Covid-19, os poderes da República dediquem um olhar mais humano ao sistema penitenciário brasileiro para superar o estado de coisas inconstitucional que assola os cárceres do Brasil.

 

*Claudio Figueiredo Costa e Maria Clara Herkenhoff são advogados criminalistas e sócios do escritório Cláudio Figueiredo Costa Advocacia Criminal.

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