A decisão da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que entendeu que o rol de procedimentos e eventos estabelecido pela Agência Nacional de Saúde (ANS) é taxativo tem ganhado destaque e dividido a opinião de especialistas e representantes do setor de saúde suplementar.
A grande repercussão se deve ao fato de que a decisão do STJ pode impactar os mais de 49.074.356 usuários em planos de assistência médica, as 699 operadoras de planos de saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) e a judicialização do setor. A saúde suplementar também movimenta uma rede de assistência que vai muito além das operadoras abrangendo também laboratórios, hospitais, consultórios médicos e laboratórios.
É interessante observar que esta decisão foi tomada após mais de 14 dias da aprovação pela ANS do limite de reajuste de 15,5% (o maior aumento da história) em planos de saúde individuais e familiares.
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Todas essas recentes notícias colocam em pauta temas e discussões diárias do setor de saúde suplementar: Os altos custos assistenciais das operadoras de planos de saúde X A preocupação dos beneficiários com o valor de suas mensalidades e o anseio e a busca pela cobertura de procedimentos e terapias inovadores.
O objetivo desse artigo é identificar os possíveis impactos da recente decisão do STJ nos agentes e no índice de judicialização do setor.
Quais são as teses da decisão do STJ?
A tese considerada correta pela maioria dos ministros definiu os seguintes parâmetros e requisitos:
- O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo;
- A operadora não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS, se existir outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol;
- É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;
- Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde.
Quais são os possíveis efeitos da decisão do STJ?
Considerando que a decisão foi proferida no âmbito daqueles dois processos e não foi julgado na sistemática de demandas repetitivas ou foi objeto de edição de súmula vinculante, o entendimento do STJ não é absolutamente vinculante às instâncias inferiores. Ou seja, os tribunais estaduais não são obrigados a seguir o entendimento do STJ e podem proferir decisões divergentes.
Além disso, vale mencionar que esta decisão do STJ pode ser levada ao Superior Tribunal Federal (STF) para análise. No entanto, eventual recurso deve suscitar questões relacionadas à constitucionalidade do tema.
Quais são os impactos da decisão no setor?
Atualmente, muito tem se discutidos sobre os reais impactos da decisão no setor. Embora seja um pouco prematuro definir exatamente quais serão os impactos do entendimento do STJ, tendo em vista que ainda há incertezas sobre a aplicação dele pelos tribunais estaduais, avaliamos abaixo algumas possibilidades:
- Beneficiários: (i) Na prática, a maioria dos serviços continuarão sendo cobertos pelos convênios e a decisão não altera coberturas obrigatórias dos planos de saúde. O aspecto positivo da decisão para aqueles que defendem o caráter exemplificativo do rol é que a decisão do STJ permite exceções. Contudo, há limitação de novidades e soluções inovadoras – ou seja, procedimentos não inseridos não rol. Os pacientes com doenças raras e com transtorno do espectro autistas, pacientes com síndrome de Down e pacientes com deficiências intelectuais podem ser os mais impactados com essa decisão; (ii) pacientes com doenças crônicas tipo câncer também podem ser afetados já que (aind não estão no rol alguns tipos de quimioterapia oral e de radioterapia, assim como cirurgias com técnicas de robótica, entre outros tratamentos; (iii) porém, vislumbra-se maior segurança jurídica e certeza para os beneficiários exigirem e cobrarem da operadoras pela cobertura de procedimentos inseridos no rol; e (iv) a decisão pode ocasionar um aumento de custos com o plano para fazer incluir na cobertura procedimentos não incluídos no rol. Para tal, os beneficiários precisarão negociar com as operadoras.
- Operadoras de planos de saúde: (i) Os planos de saúde estão legitimados para negar coberturas que não estão no rol da ANS; (ii) no entanto, se a operadora negar procedimento incluído no rol da ANS, ela corre o risco de ter a comercialização de planos suspensa ou serem multadas pela agência; (iii) as operadoras conseguirão, ressalvados os casos de exceções admitidos na tese aprovada pela decisão do STJ, manter uma maior previsibilidade de custos e riscos decorrentes da utilização médica, o que evitará aumento substancial de preços para novos produtos e se torna possível impedir grande desequilíbrio econômico-financeiro das mensalidades vigentes; (iv) com essa maior previsibilidade de custos, é possível que as operadoras sejam capazes de oferecer mensalidades mais baratas dos usuários, ampliando as possibilidades de clientes. Porém, sobre esses dois últimos itens, vale enfatizar que a redução de valores depende de vários outros fatores, como por exemplo, a taxa de sinistralidade – que, considera o efetivo uso da cobertura assistencial pelos beneficiários. Além disso, as hipóteses de exceção para coberturas não previstas no rol da ANS podem gerar incertezas no sistema e prejudicar o planejamento dos custos com mais precisão.
- Sistema Único de Saúde - SUS: Com base no art. 196 da Constituição Federal, “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Partindo dessa premissa, o SUS poderá ser impactado na medida em que os beneficiários que tenham seus procedimentos negados pelas operadoras recorram aos SUS para este atendimento. Tal migração pode sobrecarregar ainda mais o sistema público de saúde. E vale destacar que esse movimento pode também onerar as operadoras de planos de saúde em virtude da obrigatoriedade de ressarcimento ao SUS. O ressarcimento ao SUS é devido quando ocorre atendimentos ou exames prestados aos pacientes que possuem planos de saúde em instituições públicas.
- Judicialização (ações judiciais) do setor: O alto índice de judicialização do setor sempre foi e contina sendo um problema. O judiciário acaba criando direitos para os consumidores que entram com ações, o que acaba estimulando a proliferação desse tipo de demanda. Mas o excesso de judicialização acaba gerando consequências para todos o setor, inclusive para os próprios beneficiários. A decisão do STJ é relevante na medida em que definiu os critérios para a interpretação do rol da ANS, o que pode reduzir as chances de usar decisões judiciais para criar normas para o setor, que é extremamente regulado. Além disso, a decisão busca uniformizar o tema, criando um precedente relevante que poderá ser seguido pelos tribunais inferiores e que, muito provavelmente, será bem utilizado pelas operadoras de planos de saúde que defendem a taxatividade do rol da ANS. Sendo que menores custos com judicialização podem se reverter em uma melhoria da gestão e dos preços dos planos de saúde a médio e longo prazo. Porém, em virtude das exceções admitidas na tese aprovada pela decisão, aqueles consumidores que tiverem sua cobertura negada, muito provavelmente, recorrerão ao judiciário. Então, mais uma vez, ficará a cargo do judiciário decidir sobre as hipóteses de exceção e averiguar se os requisitos estabelecidos pela decisão do STJ para a cobertura nesses casos foram atendidos – situação bastante parecida com a que já se tem atualmente no setor.
- Processos em andamento: Os processos em andamento podem ser impactados se os desembargadores, em tribunais que historicamente decidiam a favor do caráter exemplificativo do rol, decidirem escolher a nova tese do STJ sobre a taxatividade do rol da ANS. Mas esta avaliação deve ser feita caso a caso, em especial, porque a tese do STJ admite exceções e porque devem ser avaliadas a características e status de cada caso.
- Pacientes internados ou pacientes que possuem liminar para cobertura de procedimentos fora da lista: Entendemos que os pacientes que obtiveram liminar para a cobertura de certo procedimento ou que já estejam em tratamento, muito dificilmente, terão uma reversão imediata ou até a longo prazo desta situação, considerando a boa-fé objetiva e a expectativa gerada no paciente de prosseguimento do tratamento e a relevância do bem tutelado que é a “vida”. Mas essa possibilidade também deve ser avaliada na prática.
- Contratos atuais de planos de saúde: A decisão possibilita a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol. Então, contratos atuais podem ser ou devem ser revisitados e avaliados para fazer constar essa previsão, se ela hoje é inexistente ou omissa. Os beneficiários deverão negociar com as operadoras esse aditivo contratual.
- Discussões legislativas: Outra questão que deve ser observada e acompanhada a partir da decisão do STJ é o efeito dela nas discussões legislativas sobre o tema. Atualmente, existem inúmeros projetos que discutem o tema e que estão tramitando na Câmara dos Deputados, dentre eles destacamos: o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) n° 187/2022; o PDL n°. 45/2022, e o Projeto de Lei n°. 376/2022. Todos esses projetos propõem alteração na Lei dos Planos de Saúde para considerar a lista de referência como exemplificativa. Alguns deputados já externaram a opinião contra a decisão do STJ e prometeram tentar reverter essa situação no congresso.
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Apesar de ainda ser prematuro definir exatamente quais serão de fato todos os efeitos práticos dessa decisão do STJ, o que deve ser avaliado é como este importante precedente será aplicado nas ações judiciais tramitando nos tribunais inferiores e como a decisão irá impactar nas discussões legislativas.
Mesmo com essas incertezas, a decisão do STJ demonstra uma tentativa de uniformizar e consolidar a interpretação do rol da ANS. E qualquer tentativa de lidar com esse excesso de judicialização do setor de saúde suplementar e de gerar mais segurança jurídica para todas os agentes precisa ser respeitada.
*Monique Guzzo é advogada das áreas de Life Science e Societário do Demarest.
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