O que esperar do Novo Marco Legal do Saneamento Básico?

Hoje 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água e outros 105 milhões vivem sem um sistema de esgotamento sanitário/Pixabay
Hoje 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água e outros 105 milhões vivem sem um sistema de esgotamento sanitário/Pixabay
Expectativa é que a Lei, promulgada em 15 de julho, gere 700 bilhões de reais no setor.
Fecha de publicación: 16/07/2020
Etiquetas: infraestrutura

Foi promulgada no dia 15 de julho a Lei nº 14.026/2020, chamada de “Novo Marco Legal do Saneamento”. Não se trata de lei que substitua a atual Lei Nacional de Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007), mas de mudança nesta Lei e em outros diplomas que regulam o setor, com inovações importantes.

O Novo Marco Legal sucede duas medidas provisórias editadas em 2018 (MP 844 e MP 868), que perderam eficácia por falta de consenso parlamentar. A Lei se origina do Projeto de Lei 4.162, de 2019, apresentado pelo Poder Executivo, e que levou em consideração muito do que foi negociado no âmbito da tramitação daquelas duas medidas provisórias. A expectativa do Governo é a de alavancar até R$ 700 bilhões em investimentos, boa parte deles privado, garantindo assim a universalização de acesso e a melhoria na qualidade dos serviços.

Em linhas gerais, pode-se traçar quatro grandes diretrizes do Novo Marco Legal:

Uniformidade da regulação

O Novo Marco atribui à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) a competência para instituir normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico. As normas devem estabelecer padrões de qualidade e de eficiência na prestação dos serviços, bem como versar sobre a regulação tarifária e a padronização dos contratos, instituir metas de universalização dos serviços e de redução das perdas de água, entre outros.

O objetivo é uniformizar a regulação praticada pelas agências reguladoras de saneamento e estabelecer padrões mínimos para os contratos assinados, proporcionando assim maior segurança jurídica aos prestadores e seus financiadores.

A proposta se originou de estudos produzidos para o Governo federal, que propõem uma política de melhoria da qualidade da regulação.

Regionalização

O Novo Marco induz à prestação regionalizada dos serviços de saneamento ao condicionar a obtenção de apoio financeiro da União ao agrupamento dos municípios para a prestação integrada dos serviços.

Além da possibilidade de criação de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões por meio de lei complementar estadual (conforme prevê o art. 25, § 3º, da Constituição Federal), o Novo Marco cria outras duas figuras para a prestação regionalizada dos serviços de saneamento básico: unidade regional de saneamento básico: instituídas pelos Estados por meio de Lei Ordinária, podendo ser composta por municípios não limítrofes; bloco de referência: estabelecido pela União, no caso de omissão do Estado na formação das unidades regionais, também podendo ser composto por municípios não limítrofes e formalmente criado por meio da gestão associada dos titulares (consórcio público ou convênio de cooperação).

O Novo Marco estabelece que, em qualquer caso, a participação do município na prestação regionalizada será sempre facultativa. Tal determinação contraria a jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal),         que considera compulsória a integração do Município nas regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. Após a sessão pública de sanção do projeto de lei, e depois da publicação da versão original deste texto, foram divulgados novos vetos, um deles justamente em razão da inconstitucionalidade acima apontada (o dispositivo vetado foi o § 4º do artigo 3º). Contudo, curiosamente, foi mantido o artigo 8º-A com a mesma redação, pelo que, apesar do veto, o vício da inconstitucionalidade permanece...

Também está previsto, no novo inciso VII do caput do art. 50 da Lei 11.445/2007, que os serviços de saneamento prestados mediante contratos estabelecidos sem regionalização, mesmo os anteriores à nova lei, não poderão receber recursos do orçamento federal ou contratar operação de crédito com entidades federais, o que inviabiliza que os concessionários privados que atuam em apenas um Município, ou as autarquias municipais de saneamento, tenham acesso a tais recursos. Ou seja: a regionalização, apesar de aparentemente facultativa, adquiriu um grande reforço.

Além disso, a lei estimula a delegação da regulação para entidade de outro ente federativo, de modo a induzir o fortalecimento de agências reguladoras intermunicipais ou estaduais em detrimento das agências municipais. Também prevê a possibilidade de uma agência reguladora estadual atuar no território de outro Estado (novo § 1º-A do art. 23 da Lei 11.445/2007).

Tal possibilidade não parece condizente com o princípio constitucional da territorialidade das competências federativas, que obriga a que uma entidade administrativa somente possa exercer poderes de autoridade no âmbito do território do ente federativo a que está vinculado. Contudo, o dispositivo seguinte (§ 1º-B do art. 23 da Lei 11.445/2007) menciona “contrato de prestação de serviços”, o que parece indicar que a agência reguladora localizada em outro Estado apenas fornece consultoria técnica, continuando a regulação a ser executada pelas autoridade locais, que possuem adequada competência territorial.

Além disso, a Lei define o que seria serviço de saneamento de interesse local e serviço de saneamento de interesse comum, utilizando critérios que já foram considerados inconstitucionais pelo STF em sucessivos julgamentos, com destaque para os julgamentos de mérito das ações diretas de inconstitucionalidade nºs 796-ES; 1.841-RJ, 1.842-RJ e 2.077-BA (esta última com acórdão publicado em setembro de 2019). Entretanto, confirmado que serão privilegiados arranjos nos quais os entes da federação cooperam voluntariamente, estes aspectos de inconstitucionalidade possuem baixa repercussão.

Concorrência , privatização e metas

O novo Marco proíbe que o contrato de programa seja utilizado para disciplinar a delegação da prestação dos serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, ou seja, proíbe que o município contrate empresas estaduais de saneamento básico sem licitação. Na prática, a proposta obriga os municípios a realizar licitação para a delegação da prestação dos serviços, na qual o prestador público concorrerá com empresas privadas pela concessão do serviço.

O texto aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal previa que os titulares dos serviços possuíam o prazo de até 31 de março de 2022 para regularizarem ou prorrogarem os contratos de qualquer espécie firmados com as companhias estaduais de saneamento, que poderão ter prazo máximo de vigência de 30 anos (até 2052, numa transição bastante longa, justamente para se permitir que os investimentos necessários à universalização sejam amortizados). Porém, o presidente da República vetou este dispositivo. Com isso os contratos de programa foram vedados no saneamento básico a partir da data de publicação da nova lei.

A avaliação é que o veto seja derrubado pelo Legislativo, porque o dispositivo era o principal elemento do acordo que permitiu a aprovação da proposta. Além disso, o veto pode incentivar os governadores a questionarem a constitucionalidade de vários dispositivos da nova lei no Supremo Tribunal Federal. Não é bom para os investimentos que este novo marco se inaugure em um ambiente de conflito e de disputa, ao invés de um acordo para patrocinar mudanças que conduzam à universalização dos serviços.

De qualquer forma, o fato é que os antigos e os novos contratos devem prever investimentos e metas de universalização, de forma a que 99% da população tenha acesso à rede de água e 90% tenha acesso a redes de coleta e tratamento de esgoto até 2033, sendo que, em situações excepcionais, essa meta possa ser adiada por até seis anos (a data-limite é 1º de janeiro de 2040).

Evidentemente que, por força da proteção do ato jurídico perfeito, os contratos de programa vigentes permanecerão em vigor até o advento do termo contratual. Além disso, o Município somente poderá retomar os serviços se indenizar previamente o prestador dos serviços do valor dos investimentos realizados e que não tenha sido totalmente amortizado pelas receitas emergentes da prestação dos serviços (como prevê o novo § 5º do art. 42 da Lei 11.445/2007).

Há dispositivo que prevê que a celebração ou a manutenção de contratos depende da comprovação da capacidade econômico-financeira do contratado em cumprir as metas, mediante recursos próprios ou capacidade de endividamento, nos termos de regulamento a ser editado pelo Presidente da República (art. 10-B e seu parágrafo único). O texto do dispositivo legal dá a entender que esta capacidade econômico-financeira será exigida apenas nos casos de contratos originados de licitação (menciona investimentos “em áreas licitadas”), não sendo aplicável aos contratos de programa, celebrados com empresas estaduais de saneamento – cuja capacidade econômico-financeira possui características diferentes, uma vez que estas empresas podem receber subvenções governamentais. Este aspecto talvez seja necessário corrigir com a edição de uma Medida Provisória.

O texto do dispositivo legal dá a entender que esta capacidade econômico-financeira será exigida apenas nos casos de contratos originados de licitação (menciona investimentos “em áreas licitadas”), não sendo aplicáveis aos contratos de programa, celebrados com empresas estaduais de saneamento – cuja capacidade econômico-financeira possui características diferentes, uma vez que estas empresas podem receber subvenções governamentais. Este aspecto talvez seja necessário corrigir com a edição de uma medida provisória.

O tema das metas é tão importante na nova lei que há dispositivo que proíbe que sejam distribuídos dividendos ou outras formas de remuneração aos acionistas do concessionário caso não esteja comprovado, e reconhecido pela agência reguladora, o cumprimento das metas contratuais.

Por fim, em caso de forte privatização dos serviços, a Lei prevê a possibilidade de que as atuais empresas estaduais de saneamento sejam responsáveis pela água no atacado, incentivando que a fase de varejo dos serviços fique com o setor privado. Com isso, o usuário final dos serviços pagaria em sua fatura duas tarifas: (i) uma referente ao atacado, para a companhia estadual – em situação semelhante ao que ocorre com as tarifas de longa distância na telefonia; e (ii) outra de varejo, para o prestador privado. Para o sucesso desta medida, é essencial a atuação dos reguladores e, em especial, da autoridade de defesa da concorrência. A exigência de que sejam duas tarifas distintas está no art. 12, § 2º, VI, e §§ 3º e 4º da Lei 11.445/2007 (dispositivos que foram mantidos) – que, curiosamente, não vem sendo observado em propostas recentes de modelagem de concessões.

Acesso a recursos federais

Somente os serviços de saneamento básico que sejam regionalizados e que  possuam regulação que atenda às normas de referência editadas pela ANA poderão receber tanto recursos orçamentários federais (com exceção dos advindos de emendas orçamentárias parlamentares, que não estão sujeitos a estas regras) como os recursos advindos de operações de crédito celebradas com entidades federais, em especial as que envolvam recursos do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).

Dentre as normas de referência, se destaca a que visa dispor sobre a governança das agências reguladoras para assegurar a sua independência decisória, bem como sua autonomia financeira e administrativa. O que se espera é que estas agências adquiram um caráter mais técnico, com diretoria de mandato fixo, e que possuam receitas próprias cujo uso não possa ser contingenciado.

Além disso, serão estes reguladores os responsáveis pelos desenhos dos contratos e dos editais de licitação, atendendo também a normas de referência editadas pela ANA. Com isso, não poderá mais subsistir concessões nas quais não seja indicada a presença do regulador, que não poderá ser substituído, por exemplo, por um verificador independente.

Observe-se que não assegurar independência ao regulador, ou não adotar os seus modelos contratuais ou de editais, levará à pesada consequência de não se acessar recursos federais, que são muito importantes para o setor. Se a Lei 11.445/2007, em sua versão original, procurava resgatar o protagonismo do Município (apesar de seu texto final extremamente mitigado neste aspecto), o novo Marco Regulatório coloca em primeiro plano o regulador.

Além dos quatro eixos mencionados, há outros dispositivos importantes:

  • Possibilidade de que a prestação dos serviços públicos de manejo de resíduos sólidos urbanos ou de manejo de águas pluviais sejam remunerados por tarifa;
  • Adiamento da obrigatoriedade do final dos lixões para até 2024;
  • Possibilidade de usuários não residenciais ou condomínios horizontais ou verticais possuírem soluções próprias de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, de forma a não estarem mais sujeitos às tarifas dos prestadores dos serviços públicos (o que poderá ter grande impacto a médio prazo nas receitas do serviço);
  • Isenta os loteadores de implantar redes de água, esgoto e drenagem, que passam a ser custeadas apenas pelos serviços de saneamento básico ou pelos Municípios – este dispositivo, apesar do acordo com o Senado, não foi vetado.

Como se vê, em face dos vetos e suas repercussões, o debate do novo marco regulatório ainda não se concluiu. Porém, é evidente que mudanças precisam ser realizadas para universalizar o saneamento, possibilitando que seja enfrentado o impressionante déficit atual de 35 milhões de brasileiros sem acesso à água segura e, ainda, de 105 milhões de brasileiros que não têm acesso a um sistema de esgotamento sanitário.

*Wladimir Antonio Ribeiro é responsável pela área de saneamento básico e Tamara Cukiert é especialista em direito administrativo e regulatório do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.

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