Muito se tem comentado acerca do processo de privatização da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), uma das pautas mais caras à agenda político-econômica do atual Governo de São Paulo. Entretanto, mesmo após a aprovação do Projeto de Lei n° 1.501 de 2023, no último dia 6 na Alesp, essa é uma temática demasiadamente polêmica, que envolve diversos interesses antagônicos e falta clareza quanto à fundamentação jurídica.
O presente artigo visa contribuir com o debate ao trazer à tona questões que podem esclarecer algumas dúvidas que têm surgido. Frisamos, desde já, que nossa opinião é essencialmente técnico-jurídica, fundamentada em uma análise sistêmica de elementos de Direito Público relacionados ao caso concreto.
Inicialmente, a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 115, inciso XXI, dispõe que a privatização de sociedades de economia mista depende de aprovação prévia da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Sabendo-se que a Sabesp é uma sociedade de economia mista, chegamos a uma primeira conclusão parcial: a privatização da estatal somente seria possível com a prévia aprovação da Assembleia Legislativa.
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Esse ponto parece estar posto e incontroverso. A problemática atual, porém, reside na forma como a proposta de privatização foi apresentada à Alesp e aprovada, via simples Projeto de Lei, como queriam os favoráveis à desestatização, ou só poderia ter sido feita mediante Proposta de Emenda à Constituição, como se posiciona a oposição ao governo estadual.
O embate ocorre em razão da interpretação de dispositivo específico da Constituição Estadual, que trata do setor de saneamento básico no território paulista:
Art. 216. §2º O Estado assegurará condições para a correta operação, necessária ampliação e eficiente administração dos serviços de saneamento básico prestados por concessionária sob seu controle acionário.
Assim, a desestatização da Sabesp faria com que o Estado passasse a ser minoritário entre os acionistas, perdendo o controle acionário, o que contraria a disposição da Constituição Paulista. Portanto, sob o ponto de vista da constitucionalidade, atingimos uma segunda conclusão parcial: a venda da Sabesp somente pode ser efetivada com a alteração do texto constitucional.
Com efeito, a oposição defende que o caminho juridicamente adequado para eventual desestatização tem de ser, obrigatoriamente, via PEC. Isso porque, consoante o disposto no artigo retromencionado, os serviços de saneamento serão prestados por concessionária sob controle acionário do Estado, impondo, portanto, que tais serviços devam ser prestados por empresas estatais (aí inseridas as sociedades de economia mista).
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Ademais, entendemos adequado pontuar que, em âmbito federal, existe um Programa Nacional de Desestatização, criado por meio da Lei nº 9.491/1997. Dentre os objetivos de tal Programa, citamos, por exemplo:
- (i) a reordenação da posição estratégica do Estado na economia, por meio da transferência à iniciativa privada de uma série de atividades
- (ii) a permissão à retomada de investimentos em empresas e setores transferidos à iniciativa privada;
- (iii) a modernização da infraestrutura e da indústria privada nacional, ampliando sua competitividade;
- (iv) o fortalecimento do mercado de capitais no país.
Entretanto, não existe um “Plano Geral de Desestatização no Estado de São Paulo”. Temos notícias tão somente de normas setoriais específicas, a exemplo da Lei nº 9.361/1996 (que criou o Programa Estadual de Desestatização no setor energético) e da Lei nº 17.056/2019 (que dispõe sobre a extinção e incorporação das empresas explicitamente citadas pela norma, o que não é o caso da Sabesp). Portanto, chegamos a uma terceira conclusão parcial: em âmbito estadual, inexiste um programa geral, incorporado à legislação, que fomente estratégias de desestatização no Estado de São Paulo.
Dito isto, a Sabesp é uma empresa essencial ao setor de saneamento no estado mais populoso do país e uma desestatização às pressas pode ser contraproducente à medida que o rito do PL é muito mais simplificado em detrimento do rito de aprovação de uma PEC. Enquanto uma emenda constitucional requer quórum de 3/5 da Casa Legislativa em dois turnos (art. 22, § 2º, da Constituição Estadual), a aprovação de um projeto de lei demanda maioria absoluta (art. 23) ― e é justamente essa simplificação de rito que o Governo pretendeu utilizar como estratégia a fim de iniciar o processo de desestatização nos próximos meses.
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De toda maneira, para além da discussão formal em torno do rito mais adequado ao processo legislativo, destacamos a essencialidade de que o tema deveria ter sido devidamente estudado e inserido em uma rede ampla de debates, inclusive mediante a integração de representantes da sociedade civil, como mecanismo de democracia participativa por ser uma questão de extrema importância para a população.
Ainda, a desestatização por meio de um simples Projeto de Lei irá, definitivamente, ampliar a insegurança jurídica em torno do tema; isso porque, com a aprovação e promulgação da lei, existe grande possibilidade de ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade pela oposição. Sob o ponto de vista pragmático-consequencialista, a insistência no projeto de lei pode produzir consequências pouco eficientes, já que o tempo economizado em uma aprovação mais simplificada certamente será compensado quando a discussão for judicializada, logo na sequência. Vislumbramos, desse modo, uma quarta conclusão parcial: a aprovação via PL tende a carecer de efetividade e segurança jurídica.
Por derradeiro, é pertinente apontar que, em que pese a existência de um movimento internacional de reestatização dos serviços de companhias de saneamento básico ― tendência que tem ocorrido em cidades como Buenos Aires, La Paz, Berlim, Paris e Atlanta ―, é clara a diretriz orientativa de maior sinergia público-privada prevista na Lei 14.026/2020. Com efeito, respeitar as disposições da Constituição Paulista e seguir o rito adequado para o pleito é uma forma de, para além de todo o exposto neste artigo, conferir maior enforcement à racionalidade normativa sustentada pelo novo marco legal do saneamento básico.
*Gustavo Justino de Oliveira é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília). Matheus Teixeira Moreira é advogado pós-graduado em Direito Público e coordenador do Núcleo de Consultoria e Assessoria em Direito Público no escritório Justino de Oliveira Advogados.
**Os autores do presente artigo estendem seus agradecimentos à estudante Thalita Hage, aluna do 8º semestre da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC) e estagiária acadêmica do escritório Justino de Oliveira Advogados, pelo empenho e apoio nas pesquisas que resultaram neste texto.
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